Silvério Pessoa ficou doido quando ouviu A ponte, música que Lenine gravou no CD O dia em que faremos contato (1997), com os Fabulous Trobadors e a dupla Caju e Castanha. ;Caramba, o que é isso?; Emboladores franceses duelando com pernambucanos? E não é que tem tudo a ver? Pois ele ficou tão impressionado que, em 2003, quando começou a fazer turnês pela Europa, tratou logo de viajar pela França em busca de artistas occitanistas. Queria saber mais sobre a Occitânia, que região era essa, que semelhanças havia entre aquela cultura e a do interior de Pernambuco. Acabou encontrando um monte de conexões entre os trovadores de lá e os cantadores de cá.
Dessas andanças, saiu o vigoroso Collectiu ; Encontros occitans, um dos dois bons CDs que o cantor e compositor está lançando em esquema independente. São 12 faixas cantadas em português, francês e dialetos occitans, gravadas com grupos como Fabulous Trobadors, La Talvera, Moussu T e Lei Jovents, La Mal Coiffée e Bombes 2 Bal. O outro álbum, No grau, é o mais autoral que ele já fez. E tem muito a ver com Collectiu. É uma espécie de retrato do artista, que nasceu em Carpina (PE), saiu do sítio, foi para a cidade grande, fincou um pé na Europa e hoje toma a tradição como base para fazer música universal. ;Meu lugar é o mundo;, diz Silvério em A volta do mar, faixa de abertura de No grau, composta por ele e Zeh Rocha.
;No grau praticamente me emancipou;, ele conta. ;Porque meu trabalho tem todo um imaginário envolvido com a música da Zona da Mata Norte de Pernambuco, com o que chamamos de cultura popular, mas é também fruto da cultura urbana, já que me desloquei, saí do interior, vim pra metrópole. A tradição é meu esteio, é o que sou. Mas minha opção não foi decalcar, copiar a coisa popular, e sim trabalhar a partir dela. Dessa tendência de diálogos, de aproximações com outras culturas, resultou o disco.;
Baião desconstruído
Silvério diz que No grau é um álbum calcado no baião, ;um baião desconstruído, sob a perspectiva pós-moderna mesmo, de desconstruir para recriar, de desorganizar para organizar refazendo;. As referências da infância ; os cantadores de rua, os acordeonistas que ouvia nas feiras, a atmosfera da Zona da Mata ; estão lá, como fonte inspiradora, assim como Alceu Valença (seu ;pai musical;) e o rock urbano das décadas de 1960 e 1970.
Produzido simultaneamente a Collectiu (este levou alguns anos, mas ficou pronto ao mesmo tempo, daí a ;ousadia; de lançar dois CDs de uma vez), No grau traz 14 faixas assinadas por Silvério, a maioria com parceiros. Um deles é o brasiliense Climério Ferreira, que o cantor pernambucano só conhecia de ouvir falar (por causa do trio Clodo, Climério e Clésio), até ser apresentado a ele em Sergipe. ;Rapaz, é um poeta maravilhoso! Nos encontramos num seminário, num bate-papo com Bráulio Tavares, e depois ele me mandou a letra de Rara beleza. Musiquei na hora, e na íntegra;, conta.
No álbum confeccionado em casa (e depois levado para o estúdio), o cantor juntou composições recentes, como Rara beleza e Baião desordeiro, e antigas, a exemplo de Saia azul, música de 10 anos atrás. Também incluiu algumas feitas no trânsito entre Brasil e Europa ; caso de Um café, escrita no aeroporto de Lisboa, numa conexão entre Paris e Recife.
Enquanto fazia um CD, ele seguia com o outro, conhecendo uma banda occitanista ali, outra acolá, impressionado com aqueles artistas e, sobretudo, com a atitude política deles. ;Assim como Paulo Freire dizia que educação não pode ser neutra, eu não faço música só pra entretenimento, só para a pessoa ficar alegre;, afirma. Música, para ele, também é atitude política.
Collectiu, Silvério ressalta, é ;um disco pioneiro, que abre a possibilidade histórica de apresentar ao Brasil a cultura occitan; e esses artistas, com quem ele dividiu palco na Europa e/ou participou de discos. ;Lenine fez o primeiro contato, abriu essa fronteira, isso é algo que tenho de agradecer e reverenciar. Conheci a música occitan por ele. Mas o disco é pioneiro porque são 12 bandas, com línguas, dialetos diferentes, num diálogo musical, intercultural, com o Nordeste do Brasil.;
Em maio, Collectiu será lançado na França. Em junho, Silvério Pessoa segue mais uma vez para a Europa. Tem 15 shows marcados na França e na Espanha. Desta vez, leva o discão debaixo do braço.
A região
A Occitânia é uma região sem Estado que envolve cidades do Sul da França (Silvério passou por Toulouse, Nice, Marseille e Carcassonne, entre outras) e uma pequena parte da Itália. A língua e a cultura occitans têm forte influência latina. Algumas semelhanças com o Brasil podem ser vistas na música (os timbres, o pife, o acordeom, os ;trobadors;/ repentistas), na dança (forró, quadrilha), na culinária, na aridez do clima, na cultura agrária.
O compositor
Os dois primeiros álbuns da carreira solo de Silvério foram dedicados a outros compositores. Bate o mancá ; O povo dos canaviais (2000) reunia músicas de Jacinto Silva (alagoano radicado em Caruaru, morto em 2001), e Batidas urbanas ; Micróbio do frevo (2002) trazia uma revisão da obra carnavalesca de Jackson do Pandeiro. Cabeça elétrica, coração acústico (2007) foi o primeiro em que ele gravou as próprias canções.