Há mais de 51 anos, eles enfrentaram a dureza de uma terra árida e inóspita, domesticada por máquinas e toneladas de concreto. Mais de meio século depois da lida nos canteiros de obras, os candangos puderam ver trechos de suas memórias contadas em um palco. O ator Guilherme Carvalho, da Cia. Pirilampo de Teatro, escreveu há pouco tempo a peça Capital, em que conta as agruras desses trabalhadores que ergueram Brasília. Na última quarta-feira, ele decidiu dar um presente aos homens e mulheres que inspiraram sua obra: na véspera do aniversário da cidade, candangos de todos os cantos do Brasil ganharam uma sessão especial do espetáculo, encenado no Centro Cultural do Sesi, em Taguatinga Norte. ;Com a presença deles, fazemos a peça com outra responsabilidade, pois sabemos que as imagens vão emocioná-los, e isso é um estímulo. Estava apreensivo, mas todos elogiaram e aplaudiram;, comemorou.
Os oito representantes da velha guarda de Brasília chegaram acompanhados de parentes, que assistiram atentos (e às gargalhadas), às desventuras de Zé, um nordestino que pretende disseminar a tradição dos mamulengos na capital, mas acaba se rendendo ao ofício de operário. Além da encenação com os bonecos, a peça investe em forrós e canções de Chico Buarque na trilha sonora, em fotografias antigas e na divertida interação do ator com vídeos dos tempos da fundação da cidade. Os primeiros moradores do Distrito Federal acompanharam tudo com olhos vidrados e risadas. Houve quem se arriscasse a fotografar os melhores momentos.
O fotógrafo da sessão era o militar Geraldo Silva, que, animado com o encontro nostálgico, carregou uma pasta de fotos dos primeiros anos de Brasília para mostrar aos contemporâneos. ;Essa peça é uma memória extraordinária, os jovens precisam saber o que aconteceu naquela época. No entanto, é preciso reforçar a mensagem positiva. Os operários não têm acesso às casas que constroem e continuam pobres em todo o país, não só em Brasília;, reforça. Também embalado pelas lembranças, o pioneiro Gerson Monteiro Guimarães contava ter nascido em Planaltina (GO), antes de Brasília se anunciar. ;Foi muito valioso relembrar os primeiros anos da vida dos candangos;, avaliou.
Saudades de JK
Entusiasmado com o trabalho artístico inspirado na saga dos operários da cidade, o candango Aplheu Thomaz Leite foi outro que embarcou na viagem sentimental rumo aos primórdios de Brasília. ;Adorei o desempenho do ator e a exposição fotográfica foi fantástica. Me trouxe recordações das noites no Núcleo Bandeirante, em que a gente ouvia o barulho dos carros e o motor dos geradores levando eletricidade aos estabelecimentos comerciais;, relembrou.
As cenas criadas pelo grupo de teatro também reavivaram as experiências de Lourdes Esteves, a única mulher pioneira a prestigiar a encenação. ;A peça é linda, perfeita, tenho certeza de que todo mundo sentiu o que eu senti ao ver Brasília nascendo. Tenho saudades dessa época, todo mundo era muito amigo e camarada. Não tínhamos conforto, mas o que contava era o esforço que a gente fazia para as coisas acontecerem;, orgulha-se.
Durante toda a encenação, o mecânico Carlos Paulista não se cansava de exaltar a emoção que a montagem foi capaz de despertar em todos os que acompanharam de perto o surgimento da cidade. Depois de sessão, quando todos foram convidados a subir no palco, admitiu estar tremendo de contentação. ;A ideia da peça é espetacular, mas os candangos não precisam de homenagem, precisam continuar o sonho de JK, no plano da educação. E essa peça é tudo, é pura educação;, avaliou. E ainda completou a noite com um convite: ;Ficaríamos muito felizes se esse trabalho fosse levado à Candangolândia, cidade dos pioneiros;. A proposta ganhou adesão imediata de Guilherme Carvalho, autor e ator da peça. ;Me deu vontade de fazer mais encontros. Pretendo entrar em contato com a Associação de Candangos Pioneiros;, garante.