Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Linguagem simples é usada na adaptação de Heróis ou O caminho do vento

Em seu garimpo por textos teatrais inéditos e de qualidade, o diretor Guilherme Reis encontrou na França uma dramaturgia cheia de frescor, daquelas que inspiram sucessivas montagens mundo afora. Escolheu uma linguagem simples e eficiente para a primeira adaptação brasileira da peça Heróis ou O caminho do vento, de Gerald Sibleyras, em cartaz no Espaço Cena, na 205 Norte, até 26 de março. Além do texto renovado, o trunfo da montagem é o trio de atores em cena.

Chico Sant;Anna, João Antônio e William Ferreira revelam o traquejo que adquiriram em anos de palco. João Antônio se destaca, com um personagem ranzinza e profundamente humano, apresentado de forma irrepreensível. Também é notável o esforço de William Ferreira para alcançar uma idade que ainda não tem. O mais novo do trio surge como o mais decrépito dos ex-combatentes de guerra, com suas mãos trêmulas, o andar vacilante e o olhar perdido. Juntos, os três demonstram entrosamento total e dão a impressão de compartilhar uma diversão genuína em cena, arrancando gargalhadas da plateia.

O tête-à-tête funciona, mas pouco serviria se não fosse apoiado por um texto de qualidade superior à média. Irônico e refinado, consegue revelar o humor contido em situações melancólicas e até mesmo mórbidas, como velórios e aniversários dos octogenários que dividem o espaço de um asilo com os três senhores. Outro ponto forte da dramaturgia é não fazer concessão ao politicamente correto. De forma sutil, um deles revela o fascínio que sente pelas noviças adolescentes de um colégio interno das redondezas. ;Quando ela me olhou, aflorou tudo. Quer dizer, o pouco que me resta;, disse ele. As tiradas cômicas se sucedem, mas é preciso se entregar a um estado de espírito que foge ao rótulo de certinho, recheado de sarcasmo e com alto grau de inteligência.

Apesar de todo o mérito da dramaturgia, a missão dos intérpretes não é nada fácil. Os encontros se dão em um espaço exíguo, sem variação de cenário ou figurino, sob uma luz constante e delicada. Não há mudanças na ação dramática, os acontecimentos se revelam nos diálogos entre os senhores da guerra. Enquanto se alfinetam, eles acabam revelando seus aspectos mais profundos, fracassos, medos, alegrias relembradas e sonhos que brotam de forma vívida. O timing esfria em alguns momentos em que os diálogos se prolongam e não há uma variação temática, mas o casamento feliz entre atuação e texto sustenta a temperatura no palco.

Os ex-combatentes dividem a cena com um cachorro de pedra, crucial para o desenrolar de seus dilemas. Ao fundo, uma tela de arame serve como sustentação para objetos de caserna: cachimbos, bengalas, botinas, garrafas antigas, fotografias amareladas. Ganchos apoiam cachecóis e sobretudos dos atores, vestidos no estilo clássico e austero da Europa no pós-guerra. Os álamos, árvores que eles sonham ver de perto em seus planos de fuga, surgem em uma projeção suave, sempre que a noite cai e o trio se recolhe. A cena em que o vento balança as folhas e todos fecham os olhos é uma metáfora poética da viagem possível para os amigos.

Heróis ou O caminho do vento trata a velhice de forma generosa e esperta, ainda que não se furte a revelar suas muitas limitações. É um tributo à lucidez e à inteligência de pessoas que sonham com a mesma intensidade de sempre, aprendendo a conviver com o fato de que o corpo não responde com o mesmo vigor de antigamente. (MM)


HERÓIS OU O CAMINHO DO VENTO
Espaço Cena (205 Norte, Bl. C, Lj. 25; 3349-6028). De hoje a sábado, às 21h, e domingo, às 20h. De 23 a 26 de março, sessões às 17h. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.