Diversão e Arte

O que eles pensam - Othon bastos

Severino Francisco
postado em 06/03/2011 07:00

Ao entrar girando na paisagem feroz do sertão baiano, na pele de Corisco, ;o cangaceiro de duas cabeças;, no filme Deus e o diabo na Terra do Sol, dirigido por Glauber Rocha, em 1964, o ator Othon Bastos correu um enorme risco de ridículo ou de glória. Mas, como se sabe, ele protagonizou uma das mais memoráveis interpretações da história do cinema. Ele estava preparado por estudos do teatro de Brecht e Shakespeare. Othon nunca mais fez um personagem de cangaceiro e continuou brilhando em filmes como São Bernardo, de Leon Hirszman, Antonio Vieira, de Júlio Bressane, Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra, ou no teatro, em telenovelas e minisséries. Homenageado no CCBB com mostra sobre suas performances nas telas, ele conversou com o Correio, no seu estilo incisivo, sobre teatro, cinema, televisão, política e espiritualidade.


Em que momento, descobriu que tinha talento para representar, que era ator?
Nunca me passou pela cabeça ser ator. A primeira coisa que queria era estudar e passar para a Aeronáutica. Mas na hora do exame, assinei o nome, não podia e fui eliminado. Os guias superiores não queriam que eu fosse da Aeronaútica. Depois, eu queria fazer odontologia. No colégio onde estudava, todo fim de semana havia uma retrospectiva de sacanagem sobre os principais acontecimentos e eu era o narrador. Aí um colega resolveu escrever uma paródia do Otelo, de Shakespeare. O Walter Clark era o Iago, um colega de São Paulo representava o Otelo e a menina mais desejada seria a Desdêmona, lindíssima. E eu era o ;ponto; da brincadeira.

; É preciso dignidade e amor;

O que fazia?
Ficava sentado atrás de uma mesa. Mas, no dia do espetáculo, em cima da hora, Walter Clark ficou apavorado quando viu a sala cheia de gente. Aí o diretor falou: ;A única pessoa que pode substituir o Walter é o Othon, pois ele conhece todas as falas atuando no ponto;. E comecei a atuar. No espetáculo, haviam uns irmãos que estudavam na Escola de Pascoal Carlos Magno e me levaram para lá, onde fiquei dois anos.

Como chegou à interpretação do personagem Corisco, em Deus e o diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha?

Eu tinha passado dois anos em Londres estudando teatro e quando voltei a Salvador, o diretor de teatro Martim Gonçalves me perguntou se eu queria ir para a Escola de Teatro da Bahia, que vivia um momento muito especial. A escola de dança era dirigida por uma húngara chamada Yanka Kubisca. A de música por Kollreutter e a de teatro com Martim Gonçalves. Yanka ensinou a usar o corpo cenicamente, sem dança, para a palavra, e era fantástico. O Kollreutter ensinava que a vida é música.

E como o Glauber entrou na história?
Foi na escola de teatro que conheci rapidamente o Glauber. Era poeta, ator e relações públicas da Escola de Teatro da Bahia. Saímos da escola de teatro e fundamos o Teatro Vila Velha. E o Glauber viu os nossos espetáculos. Quando fez Deus e o diabo, Glauber chamou para fazer o Corisco um rapaz de nome Adriano, um homem alto e muito bonito, que faria a batalha final com o Maurício do Valle, o Antônio das Mortes, no filme. Mas Adriano não pôde fazer, saiu e o Glauber me chamou. Tudo ocorreu em cima da hora, o dinheiro estava acabando, era preciso gravar todas as tomadas de uma só vez para não desperdiçar a película, que era caríssima na época.

O que determinou uma interpretação tão memorável?
A coragem e a grandeza do Glauber, com 22 anos. O filme tinha um roteiro com um flashback de Corisco encontrando o Lampião. Tentei abrir os olhos do Glauber: por que, em vez de mostrar, narrar o encontro entre os dois? Como eu estava realizando experiências com o teatro épico do Brecht, fazíamos discussões sobre como representar as cenas. O corisco, quando você solta, ele roda, tem uma batalha desste tipo em uma cidade do Nordeste. Então, inspirado nessa brincadeira, o personagem Corisco entra em cena girando. O Corisco traz uma aura, um cosmos e esse homem aparece neste sertão como um desvairado, uma coisa louca. Entra com uma outra dinâmica, um outro estilo de movimentação. Corisco fala manso, quem tem o poder não precisa gritar, a pessoa sabe que você é poderoso. Se gritar, se torna fraco. A força é moral, ética. Sugeri, o Glauber se animou e teve a coragem de mudar tudo, no meio do caminho.

Afinal, vocês estavam apenas buscando soluções criativas para a precariedade de produção.
Quando Deus e o diabo na Terra do Sol estreou no Rio, provocou grande impacto. Há uma biblioteca de comentários sobre o filme com um bando de asneiras escritas pelos intelectuais. É isso, é aquilo, rompe com a poética de Aristóteles, cada um dizendo coisas mais imbecis do que o outro. Ninguém perguntou por que as coisas ocorreram daquele jeito. Não tinha nada de filosofia.

Houve criação;
Criar é mais importante do que ser feliz, disse o poeta Wally Salomão. O importante é criar, gerar, se envolvendo, dando vida a alguma coisa. Naquele momento em que a gente estava fazendo Deus e o diabo, a questão era: vamos transformar isso em algo divino. Se vai dar certo ou errado, não importa. O sucesso nunca me interessou.

Por que você parou de fazer cinema, durante três anos, depois de ter feito o Corisco em Deus e o diabo?

Porque o personagem me marcou e eu só recebia convite para fazer cangaceiro, bandido e estuprador. Eu disse: eu fiz um cangaceiro e nunca mais vou fazer outro. Quando Paulo Sarraceni me convidou para fazer Machado de Assis no cinema, achei ótimo.

E como foi fazer o personagem do Paulo Honório, em São Bernardo, do Leon Hirszman?
Para mim, é o grande filme que fiz. Primeiro, tive de lutar contra o conhecimento das pessoas sobre um personagem que é um clássico da literatura brasileira. Leon Hirszman disse: ;Não se preocupe, esqueça a descrição de Graciliano do personagem de lábios grossos e cabelo sarará. Crie o seu personagem do Paulo Honório, pense em algo que te satisfaça;. Foi um trabalho exaustivo de busca, mas me satisfaz. Fiquei muito emocionado ao saber que Nildo Parente morreu, era o último ator vivo do filme. Então, quando revi o filme aqui em Brasília, fiquei me sentindo em uma mesa de sessão espírita, com Isabel Ribeiro, Vanda Lacerda, Jofre Soares e Mário Lago. Todos falecidos. O único vivo sou eu, Paulo Honório, falando para os mortos.

A sua geração era muito jovem, mas tinha uma grande cultura teatral muito forte. Temos bons atores jovens, mas faz falta uma formação mais densa?

Acho que sim, mas se você pegar os belos atores jovens em atuação, verá que todos vêm do teatro, aprendem no teatro. Não sei se teria a segurança de fazer um Corisco ou Paulo Honório se não tivesse uma formação de ator para saber como trabalhar para chegar a determinado ponto. Podia fazer canhestramente do Corisco uma bichona de brincos dando saltos na caatinga. Graças a Deus, o teatro me deu a força para fazer cinema, televisão, minissérie, telenovela.

Como vê a situação do ator em face da sobrevivência? O ator deve fazer tudo ou precisa ter uma ideologia?
É uma questão pessoal, mas acho que o ator precisa ter ideologia, tem de trazer isso dentro dele. Está cada vez mais difícil fazer e sobreviver de arte no Brasil. É preciso fazer tudo com um amor extraordinário, uma compaixão muito grande. Me chamaram pra fazer um garçom de um bar em uma telenovela. Não interessa se fiz Deus e o diabo, Os deuses e os mortos, São Bernardo, as pessoas estão interessados no glamour. Vejo os meus colegas fazendo belos trabalhos na televisão. Lawrence Olivier fazia todos os tipos de personagens, em variadas situações. Vamos acabar com este pudor. O mais importante é fazer com amor e dignidade. Morra, mas morra de amor.

Quem são os atores jovens talentosos?

Não gostaria de citar, mas o Lázaro Ramos é um belo ator. O Wagner Moura é um belíssimo ator. O público é muito esperto, sabe quando um ator está enganando. Não interessa se você faz no teatro, na boate ou na tevê. Tem de entrar como se fosse o último dia do espetáculo. Está entrando em um lugar sagrado para você.

Você está vendo um horizonte de esperança no Brasil?
Às vezes, acho que é decepcionante a vida política. Não sei dizer se sou esperançoso. Vou ver para crer.

O que acha da crítica de que filmes de sucesso da safra mais recente do cinema brasileiro, como Cidade de Deus e Tropa de elite, estariam glamourizando a violência?

Não sei se há glamourização ou se a vida está nos levando a isso. No Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte ou Brasília, vivemos uma situação de violência permanente. Então, tem de denunciar mesmo, tem de abrir os olhos, vida não é cor-de-rosa, tem de viver a cada momento, é uma viagem. A maioria desses filmes é baseada em casos reais: Ônibus 174, Carandiru, Cidade de Deus. Aí vocês ficam chocados. Os americanos cansaram de fazer isso e ninguém fala nada.

Como vê a situação do cinema brasileiro na atualidade?

A Idade Média do Collor acabou com o cinema e com tudo. Agora, estamos engatinhando de novo. Temos Tropa de Elite e também Chico Xavier e Nosso Lar. Você pode fazer isso ou aquilo. Por que não posso fazer?

Você acha que esses filmes da linha espírita podem contribuir para mudar os valores das pessoas?
O que falta no mundo é espiritualidade, as pessoas estão perdidas, isoladas. Não precisa ser espírita, mas é necessário ter alguma espiritualidade.

O que acha da crítica de que os filmes espíritas transmitem uma visão rasa do Kardecismo?
Fiquei surpreso com o fato de que 4 milhões de pessoas viram Nosso lar. Vinha gente de cadeira de rodas, e não era para ver fulaninha badalada no cinema. É algo espiritual. Não é possível que 4 milhões de pessoas sejam débeis mentais. Todos os sábios de todas as religiões indicam um caminho só, que se chama amor.

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