Desde que criou o grupo Cena, o diretor Guilherme Reis se dedica a pesquisar dramaturgias inéditas, especialmente as produzidas na América Latina, e verte suas descobertas para os palcos brasilienses. Recentemente, ele mergulhou na cultura francesa e fez sua versão da peça Heróis ou o caminho do vento, escrita pelo parisiense Gerald Sibleyras, e nunca antes encenada no Brasil. ;Descobri que ele é um autor ativo, com experiência em teatro, televisão e cinema, e textos de muita qualidade;, avalia Reis. O espetáculo estreia hoje, às 21h, no espaço que leva o nome do grupo, e fica em cartaz até 26 de março.
O enredo revela a convivência entre três homens idosos, ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, que vivem no mesmo asilo, muitos anos depois. Acostumados a comandar, agora sobrevivem sob a guarda de uma freira. Dividem o tempo entre alfinetadas mútuas, planos mirabolantes de fuga do asilo e ainda tentam evitar uma reforma em uma das varandas, que os forçará a dividir o terraço privado, onde se encontram diariamente, com os demais internos do lugar.
;A relação entre eles e de cada um com o mundo é uma comédia. É uma poesia sobre a velhice, a memória e a amizade, além de ser um texto atual. A falta de perspectiva entre os mais velhos nos aflige diariamente;, considera o diretor da peça, cujo texto foi traduzido pela atriz Carmem Moretzsohn.
Para dar vida a esses mártires de guerra, nada melhor do que um pelotão de veteranos do teatro de Brasília. Os três amigos são vividos por Chico Sant;Anna, João Antônio e William Ferreira. No papel de Gustavo, militar autoritário e durão, João Antônio elogia a sensibilidade do texto. ;Na peça, faço um homem mal-humorado, que reclama, finge não gostar, mas tem carinho imenso pelos amigos;, descreve.
Dando vida a René, Chico Sant;Anna destaca que seu personagem é a mais adaptado ao estilo de vida no asilo. ;Ele tem uma deficiência na perna, deve ter sofrido com seus ferimentos de guerra, mas gosta do lugar onde vive, não tem tanto interesse pelo que está além daquele território. Ele adora os amigos, é uma criatura simples, aquilo basta para o que lhe resta de vida;, acredita.
Enquanto celebra a primeira peça sob a direção de Guilherme Reis, o ator William Ferreira, o mais novo do trio, tenta alcançar uma velhice que ainda não vivenciou. ;Ele tem um estilhaço de bala na cabeça, desmaia várias vezes, é completamente avoado. Me encanta e me intriga a loucura do personagem, o Fernando;, revela.
Experientes
O texto foi apresentado pela diplomata francesa Chantal Haage, com quem Guilherme Reis estabeleceu vínculos em decorrência de uma de suas produções de maior destaque na cidade, o festival Cena Contemporânea. ;Nos deparamos com esse texto voltado para uma geração mais vivida, e Brasília já conta com atores excelentes e experientes nessa faixa de 50, 60 anos;, descreve Reis. Há dois anos, ele alimenta a ideia, mas só agora foi possível concretizar o projeto.
Apesar da admiração pelo dramaturgo francês, a pesquisa do grupo Cena fará uma nova curva: após encerrar a temporada de Heróis, os integrantes começarão os ensaios de espetáculo inspirado no livro A bagatela, da atriz e escritora norte-americana Susan Glaspell. ;Os ensaios começam em março;, avisa Reis.
A busca por trabalhos de autores estrangeiros, no entanto, está longe de desqualificar a produção nacional. ;Hoje, existe uma dramaturgia brasileira crescente, mas ela não circula. Na dramaturgia latina, por exemplo, já há associações de autores e bibliotecas virtuais com esses textos;, comenta. Marcando o mapa-múndi com pontinhos coloridos, o grupo Cena segue em sua busca teatral: apresentar à plateia de Brasília textos interessantes e que sejam novidade por aqui.
Pelo mundo
Guilherme Reis não conhece nenhuma das versões anteriores da peça, montadas mundo afora. Além de ter sido alvo de sucessivas montagens na França, Heróis foi traduzida para o inglês por Tom Stoppard e apresentada a plateias inglesas e americanas. Na América do Sul, cumpriu temporada no Uruguai, sob a direção de Mário Ferreira, com o ator Jorgae Bolani no elenco (protagonista do cultuado filme Whisky).
Na varanda
Avessos à convivência com os moradores do asilo, os três personagens se isolam em uma varanda menor, onde a peça se desenrola. Por causa da reforma, todos serão transferidos para esse espaço exíguo, atrapalhando os planos de fuga que eles alimentam, sonhando chegar a uma colina que avistam em seus encontros diários. ;Esses três senhores maravilhosos precisam lidar com as falhas de memória e a dificuldade de encontrar sentido na vida. Constroem juntos uma fantasia libertária e essa colina ao longe, esse bosque ao vento, é uma possibilidade de vida nova;, explica o diretor.
HERÓIS OU O CAMINHO DO VENTO
De hoje a 26 de março, no Espaço Cena (205 Norte; 3349-3937). Esta semana, sessões de quarta a sábado, às 21h, e no domingo, às 20h. Nas duas semanas seguintes, sessões de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 20h. De 23 a 26 de março, apresentações às 17h. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Não recomendada para menores de 14 anos.