Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Três lançamentos ajudam a clarear o tempo obscuro da ditadura militar

A literatura pode fazer o que o governo brasileiro ainda não conseguiu resolver quando se trata de ditadura, desaparecidos e crimes cometidos pelos militares. Se muitos arquivos continuam fechados e a punição de responsáveis já não é mais cogitada, escritores, testemunhas e jornalistas não se cansam de investigar, apontar, contar, recontar e até ficcionalizar o ocorrido. Vá lá, a tendência não chega aos pés do que acontece na Argentina, país há muito obcecado em escrever sobre a ditadura. Por aqui, três lançamentos recentes reforçam o empenho em mergulhar em arquivos e memórias.

Na quarta-feira, o mineiro Jason Tércio passou a tarde na Câmara dos Deputados para autografar seu Segredo de estado ; O desaparecimento de Rubens Paiva. Tércio fuçou arquivos de conteúdo inédito para contar como o então empresário e ex-deputado Rubens Paiva foi preso, torturado e morto no verão de 1971. O livro é uma reportagem preciosa, com riqueza de detalhes inclusive nos diálogos. Jornalista, Tércio tentou reproduzir os últimos dias de Paiva com ajuda de depoimentos, cartas e, principalmente, pesquisa em arquivos aos quais nem mesmo a família do desaparecido teve acesso. ;Quis fazer o livro porque o que saiu até agora foram informações bastante resumidas;, explica o autor.

A pesquisa de Tércio contribui para refutar a tese de que o ex-deputado havia fugido das mãos dos militares, fato registrado em ofício de capitão do exército. Também foram valiosos os depoimentos de duas mulheres que viram Paiva agonizante. ;Mas a verdade é que há ainda um grande vazio. O Brasil está engatinhando em vários aspectos ligados à ditadura;, acredita. ;Essa coisa dos desaparecidos, por exemplo. Não há mais no país nenhum risco de instabilidade por causa da investigação dos crimes. Na Argentina, eles fizeram e o mundo não caiu, o governo ficou estável. E, na maioria das vezes, as famílias só querem saber onde estão os restos mortais.;

Apesar de tímida investida na ficção ao reproduzir diálogos, o livro de Tércio é uma investigação jornalística. Mas a ficção também tem contribuído para refletir sobre as duas décadas de regime militar. Ronaldo Costa Fernandes ambientou seu novo romance, Um homem é muito pouco, nos tempos da ditadura. O Capitão Vaz, embora não seja o personagem principal da trama, é um eficiente torturador. O clima de opressão e desconfiança típico de ditaduras está presente em todo o livro. ;Tantos anos passados, o que a ficção pode trabalhar é que hoje não há mais a necessidade da denúncia;, diz o escritor. Para ele, livros sobre a ditadura no Brasil não são frutos de fenômeno novo. Nos anos 1970, o tom de denúncia predominava e, quando a ficção arriscava, precisava fazer isso com linguagem mais simbólica. O realismo fantástico de J. J. Veiga deu conta da tarefa durante um tempo. ;Hoje as pessoas envelheceram e a experiência ficou distante. Isso, para a literatura, é fundamental.;

O diplomata Edgard Telles Ribeiro precisou dessa maturação para escrever O punho e a renda. Foram necessários 40 anos de distância dos fatos para decidir construir o romance. Telles fala da atuação dos diplomatas durante a ditadura. ;Essa saga, de certa forma, estava entalada dentro de mim ; e precisava vir à tona;, revela. ;O que textos ditos de investigação, sejam eles de inspiração jornalística ou de outras origens, não logram apurar, a ficção ajuda a vislumbrar, farejar, intuir. Se enraizada na realidade, esse gênero de ficção pode levar o leitor a regressar no tempo e se deter sobre uma época que, além de todos os horrores conhecidos e já denunciados, também explica o clima de impunidade em que vivemos hoje em dia, cuja origem mais perversa remonta à ditadura.;

SEGREDO DE ESTADO ; O DESAPARECIMENTO DE RUBENS PAIVA
De Jason Tércio. Objetiva, 334 páginas. R$ 39,90

UM HOMEM É MUITO POUCO
De Ronaldo Costa Fernandes. Nankin, 488 páginas. R$ 50.

O PUNHO E A RENDA
De Edgard Telles Ribeiro. Record, 560 páginas. R$ 69,90.