;Que o homem seja um auxílio para o homem;: assim, numa frase, o mais encenado dramaturgo alemão, Bertolt Brecht, consegue simplificar o arcabouço da proposta cênica revolucionária que ele defendeu, ao elaborar 48 peças de teatro e mais de 2 mil poemas. Artista que se obrigava ;a ser lógico; por ter ;pouco disso; em si, Brecht conduziu uma obra fragmentada, com orgulho de compor arte em ;blocos primitivos;, atuando como amálgama (e agente transformador) para uma massa trabalhadora inteirada dos males capitalistas e assombrada pelo desemprego. Passados mais de 60 anos da maior etapa de ebulição criativa de Brecht, problemas sociais se agravaram e vozes imprudentes vieram a questionar a validade do que produziu. Bom antídoto à apatia, com mais de sete horas de duração, a caixa de DVDs Brecht no cinema (da Versátil), recentemente colocada no mercado, serve como empenhada anfitriã para o universo do autor conhecido ainda pelas elaborações teóricas.
Militante político, com criações coletivas e fortalecedor do teatro épico ; que aniquilou o mero encantamento da plateia, antes dissuadida pelo peso da emoção das cenas ;, Brecht é um chamariz à participação, uma injeção de pensamento, ainda que a abordagem cinematográfica recebida fique bem aquém do que produziu. ;Ele pensava que um experimento teatral que pudesse ser transformado em filme, e falar com o mundo inteiro, sobre um determinado problema, era um ganho e não um empobrecimento;, avalia, num dos três discos da caixa, a professora da USP Iná Camargo Costa.
Para além do didático e enriquecedor contexto formulado por outros dois especialistas entrevistados, a caixa se completa com os longas A ópera dos três vinténs (1931), Kuhle Wampe (1932), Os carrascos também morrem (1943) e Brecht, a arte de viver (2006); com o média Os mistérios de uma barbearia (1923) e o curta Como vive o trabalhador berlinense (1930). Diante de todos os desentendimentos de Brecht com a maioria das fitas, é prudente classificar as investidas em cinema como sondagens ao que elaborou nos palcos ou mesmo nas intenções perante o cinema.
Codirigido por Brecht, Os mistérios de uma barbearia vem lastrado por autenticidade: os clientes que, pela condição social, passam à frente de outros, devem se preparar para investidas em terreno surreal, uma vez que, no comando da ação, um displicente barbeiro será capaz de cortar até cabeças. Noutro registro, Como vive o trabalhador (de Slatan Düdow) expõe denúncia imagética de contrastes sociais, com proletários tuberculosos sublocados em porões. Com visão mais aprofundada, o mesmo Slatan Düdow criou o libelo Kühle Wampe, com roteiro de Brecht.
Num cenário em que a assistência social alcançava menos de 35% dos 315 mil desempregados (só em Berlim), o romance entre Annie e Fritz, em Kühle Wampe, revela-se quase patético (;O jogo dos sexos se renova a cada primavera;, debocha a música de Hanns Einsler). Forçada ao deslocamento para o campo, uma família se refaz, após o suicídio de um integrante jovem que amarga a pressão dos parentes. No discurso politizado de personagens, até o Brasil comparece, condenado pela queima, em Santos, de 11 milhões de quilos de café, tidos como excedente. Em contraponto à integração feita com a natureza (objeto de inspiração para Brecht), a produção sequenciada de produtos, bem como consumismo e mecanização, chega com espectro de fantasma. No discurso do filme, estão embutido os poderes transformadores dos megafones e das intervenções cênicas.
BRECHT NO CINEMA
Caixa com três DVDs que reúnem sete programas, com longas e curtas-metragens (produzidos entre 1923 e 1943), além de documentário recente (A vida de Bertolt Brecht, Alemanha, 2006) e depoimentos de especialistas brasileiros na obra do autor. DVD Versátil, 453min. Não recomendado para menores de 14 anos. Preço: R$ 85,90.
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