Há três anos Joyce e Tutty Moreno festejaram três décadas de convivência afetiva e musical. Um dos eventos comemorativos à efeméride foi o lançamento, na Inglaterra, do disco Samba-jazz & outras bossas, o primeiro assinado pelos dois ; apesar de, nesse tempo todo, o nome de um ser quase inevitável nos trabalhos do outro. Feito sob encomenda da gravadora Far Out Recordings, o álbum teve que esperar três anos para ganhar a edição que acaba de sair no Brasil. ;Tem sido assim com meus trabalhos, desde meados dos anos 1990. A gente grava por encomenda de alguma gravadora estrangeira e só depois os discos chegam aqui;, explica Joyce.
E, como nos outros casos, a demora do lançamento brasileiro se deu por exigência contratual. ;Quando se grava por encomenda de um selo de fora, eles pedem um prazo, pois, quando o CD sai no Brasil, acaba voltando para lá como importado, a preços mais baixos. Aí é uma concorrência injusta com quem bancou a produção;, esclarece a cantora, compositora e violonista, que é hoje artista top do elenco da Far Out. ;Essa gravadora foi inaugurada com um projeto meu, Tocando, sentindo, suando ; Tutty Moreno and friends, que tem participação e coprodução de Joyce;, conta Tutty.
A forma como complementam a resposta um do outro revela a cumplicidade que fez Joyce e Tutty Moreno atravessarem 34 anos juntos. A história começou em 1977. Conheceram-se tocando numa casa noturna em Nova York, onde ela era parte do show e ele, que morava lá havia três anos, integrava o grupo da casa. ;Conhecíamos um ao outro de nome. Principalmente eu a ele, que era o baterista mais famoso do Brasil quando resolveu ir morar nos Estados Unidos. Fiquei encantada com a elegância dele tocando, de uma musicalidade que poucos bateristas têm. Até falei, na ocasião, que ele parecia que estava dirigindo uma Mercedes esporte...;, relembra Joyce. ;Em duas semanas estávamos morando juntos;, acrescenta.
;Da minha parte, a identidade musical veio antes mesmo de tocar juntos. Quando ela ensaiava, eu observava extasiado. O resto aconteceu numa simples troca de olhares, e não teria como resistir;, conta Tutty. ;Um dia dei uma canja no grupo dela e ouvi isso que ela falou. Foi a porta que se abriu pra que eu tomasse coragem. E não é que deu certo?; Essa história, claro, teve trilha sonora: o som que fazia a cabeça dos dois à época e influenciou a música que fazem até hoje. No caso de Tutty, os trios instrumentais, com os bateristas Edson Machado, Dom Um Romão e J.T. Meirelles e o Copa 5. Para Joyce, a fusão de samba e jazz criada nos anos 1960 e os cancionistas que sempre admirou.
Homenagens
Daí a decisão de homenagear, nesse disco, compositores que serviram de referências musicais para ambos naquele período, misturando músicas deles e criações inéditas de Joyce. Da cantora, escolheram Compositor (com Paulo César Pinheiro), Sabe quem? (com Zé Renato), Bodas de vinil (Joyce) e quatro instrumentais. Numa delas, Feijão com arroz, Tutty volta a tocar, depois de 40 anos, seu primeiro instrumento profissional, sax alto. ;Não sou multi-instrumentista. A bateria foi definitivamente a minha escolha. Quando completamos 25 anos de união, a Joyce me presenteou com um sax alto, com o qual tenho me divertido em casa, sem pretensão. No disco, a pedido dela, toquei a melodia de Feijão com arroz;, ressalva.
Além dessas, gravaram April child (Moacir Santos/Raymond Evans/Jay Livinsgtone), Berimbau (Baden Powell/Vinicius de Moraes), Devagar com a louça (Luiz Reis/Haroldo Barbosa) e Embalo, de Tenório Jr., pianista desaparecido misteriosamente em Buenos Aires em 1976, enquanto acompanhava Toquinho e Vinicius num show. ;Estava nessa excursão com eles até Montevidéu. Só não fui para a Argentina. Tenório era muito amigo de Tutty também;, lembra a artista. Poderiam ter entrado outros. Joyce lembra Tom Jobim (;mas eu mesma já gravei três discos inteiros dedicados só a ele;). Tutty cita ;Luiz Eça, de quem eu já gravara temas no meu disco Forças d;alma de 1998; Jorginho (sax-alto e flauta, já falecido) de quem muito gosto; Paulo Moura, um nome e uma sonoridade que influenciou muita gente na época, e todos os citados no nosso texto do CD, Edison Machado, Dom Um Romão, J.T. Meirelles;;
SAMBA JAZZ & OUTRAS BOSSAS
Disco de Joyce e Tutty Moreno. 14 faixas produzidas por Joyce e Tutty Moreno. Lançamento Biscoito Fino. Preço médio: R$ 36." />Todas essas influências tão fortes que Joyce e Tutty até dispensam novas referências musicais. ;Ouço os mesmos discos de 45 anos atrás. Sinceramente, são os que mais me dão prazer de ouvir. As influências que ficaram são muito consistentes, são o caminho, a partir de certo momento, nós mesmos o criamos. Com isso não quero dizer que deixe de escutar os discos e trabalhos de amigos que respeito e também da garotada que sempre chega;, diz Tutty. Com Joyce, não é diferente. ;Influência é que nem pai e mãe: eles dão a mão para você aprender a andar. Depois que você anda sozinho, isso fica desnecessário. Ouço muita coisa, mas hoje ouço principalmente o que me dá prazer;, diz ela.
Canção pra Garoto
A edição brasileira tem uma a mais que a inglesa: a versão com letra de Garoto, que Joyce fez para homenagear Aníbal Sardinha, o Garoto. ;Ele foi o reiventor do violão moderno brasileiro e eu sentia que precisava explicar melhor a importância dele nessa reinvenção. Por isso queria muito fazer essa letra;, conta a compositora. A letra só foi feita recentemente. ;Quando ficou pronta, resolvemos incluir as duas versões, para não mexer na estrutura original do disco, e ela entrou como faixa-bônus, só para o Brasil;. Tutty conta: ;Joyce estava inquieta, pois, embora gostasse muito da música, sentia que faltava algo. Ela funciona assim. A música sai de roldão, a letra vem com o tempo e exige trabalho. Um belo dia ela me chamou e me mostrou a letra;.
Leia depoimentos de Joyce sobre Tutty Moreno e de Tutty sobre Joyce
Tutty sobre Joyce
"A Joyce não poderá nunca ser vista apenas como cantora. Antes mesmo de compositora ela é um músico completo. Aliás, completíssimo. E quem fala aqui não é o marido, mas o músico, que a admirou e muito a respeitou desde o primeiro encontro. Na verdade, não me julgo nem um pouquinho suspeito para dizer isso, pois faço apenas coro com um enorme número de músicos do mundo inteiro. As divisões que ela faz espontaneamente com a voz, ainda me surpreendem, mesmo depois desses 34 anos de vida e palco. O caminho harmônico que ela usa é muito particular e posso dizer, seguramente, que em todos meus anos de música, nunca toquei com um ou uma violonista (e olha que já toquei com muita gente boa nesse instrumento) que fosse tão seguro ou segura e claro ou clara como ela"
Joyce sobre Tutty
"Tutty é um dos músicos mais criativos que já vi tocar, e até hoje me surpreende. Acho que o fato de ele ter começado por instrumentos de sopro foi fundamental para isso. Uma vez um baterista japonês amigo nosso filmou o Tutty tocando, para tentar copiar as frases dele. No dia seguinte, quando perguntamos se tinha dado certo, ele respondeu: ;Tutty é impossível de ser copiado, nunca repete a mesma frase musical, cria o tempo todo!’. Isso é o que mais curto quanto toco com ele, a gente nunca sabe para onde vai, tudo é imprevisível. Acredito que foi a formação inicial dele de saxofonista que o levou a se tornar um baterista tão melódico e harmônico, que toca totalmente para a música"