Diversão e Arte

Romance conta história que teria supostamente inspirado Dom Casmurro

postado em 30/01/2011 08:00
Marco Lucchesi: Talvez não faça sentido para os leitores do livro O dom do crime a informação de que em 6 de março de 1866, o mapa astral do Rio de Janeiro registrava júpiter a meio caminho entre capricórnio e sagitário. Mas foi debaixo desse céu que o médico José Mariano manchou as mãos de sangue para lavar a honra por desconfiar do adultério da esposa, Helena Augusta, ambos residentes à casa 22 da Rua dos Barbonos. Para Marco Lucchesi, 47 anos, autor de 10 livros de poesia e outros tantos sobre crítica literária, a posição dos astros naquela noite teve preponderância no desfecho sangrento. Poeta, acadêmico e professor de história, ele é conhecido no meio intelectual brasileiro por ser um erudito precoce. É nome dado como certo para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (a eleição é em 3 de março) este ano e se aventura pela primeira vez a escrever um romance. ;A poesia sempre me move. Dentro e fora de seu centro, por assim dizer, mais tradicional. Sempre fui leitor de romances e creio que há no gênero possibilidades outras. Uma poética da ficção guarda suas raízes com outras partes;, defende-se o poeta que virou prosador. Na ficção criada por Lucchesi, o homicídio descrito acima chocou a capital da florescente república e despertou um advogado aposentado a descrevê-lo em memórias na forma de um diário. Os textos de 1900 não foram assinados e, seguindo o desejo do escritor, eles só poderiam ser lidos em 2010 quando fosse aberta a arca do sigilo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. ;Quando serei um espectro, assim como os personagens desse libelo;, previu o personagem. O que faz o crime da Rua dos Barbonos resistir aos efeitos do tempo é uma jogada engenhosa de Lucchesi tecendo uma teia unindo o assassinato de Helena a uma suposta inspiração artística para que Machado de Assis escrevesse o clássico da literatura brasileira Dom Casmurro, publicado naquele ano. O universo machadiano criado pelo autor dos anos 2000 consumiu três anos de pesquisa e é surpreendentemente realista. ;Cada um de nós traz uma ideia de Machado. Ideia vaga, talvez difusa, mas eminentemente sua, apaixonada e intransferível. Uma paisagem que fascina. Todo um rosário de ruas e de igrejas. Morros derrubados. Praias ausentes. Tudo o que perdemos move-se ainda nas páginas de uma cidade-livro. Cheia de árvores e de contradições, por vezes dolorosas. Chácaras e quintais compridos. Aqueles mesmos quintais que assistiram aos amores de Bentinho e Capitu e dentro de cuja educação sentimental nos formamos;, descreve Lucchesi sobre o cenário de início de século 20. Já a identidade do advogado permanece um mistério. ;Vejo o leitor curioso a indagar quem sou ou quem fui. Digamos que me chamo Ninguém. Doutor Ulisses. Doutor Ciclope. Como preferir. Que cada qual suporte o peso do seu próprio nome, o que não é pouco. Uma história pulsa dentro dele e circunscreve nossa ilusão de estar no mundo;, descreve o bacharel, narrador tão irônico quanto o autor defunto de Machado em Memórias póstumas de Brás Cubas. O ;Doutor Ulisses ou Ciclope; nem imaginava a distinção que o bruxo do Cosme Velho adquiriria na história da literatura brasileira e tampouco prevê os debates acalorados que se seguiriam em torno da possível traição de Capitu. ;A ideia de reverência não me parece ter movido o personagem a anotar e dizer o que ele apresenta. A ideia soberana ou dominante é a de como narrar a história e de como subtrair-se à repetição no universo sempre igual, com pequenas possibilidades de criar um novo destino. O personagem que trabalha o livro com alusões e pequenas provas que ele quer verídicas tangencia o romance de Machado. E, contudo, buscando a realidade o advogado se depara com a ficção;, desconversa Lucchesi sobre as convicções do personagem que criou. <b>O DOM DO CRIME</b><Br>De Marco Lucchesi. Record, 160 páginas. R$ 29,90.Em Dom Casmurro, o tormento de Bentinho é gerado pela desconfiança da lealdade de Capitu. De tão bem construída, a veracidade do dilema sustentou debates durante anos no meio acadêmico. ;A potência é melhor que o resultado. O não saber gera uma teia de imagens que não cessam de crescer. E a língua é superior a tudo, parte e supera a própria história. Ela é ao mesmo tempo a trama e muito mais que a trama;, analisa o acadêmico sobre a polêmica. Neste livro, o mistério é se Machado usou realmente o crime da Rua dos Barbonos para se inspirar. Em todo caso, a pequena audácia de fabular sobre as razões do ;bruxo; nunca atormentou o narrador contemporâneo. ;Em literatura nada, absolutamente nada é proibido. A literatura é um campo aberto, ecumênico. E não existe uma fórmula anterior. Só o projeto literário em si mesmo é o que conta;, defende Lucchesi. Trechos ;Meu pobre estômago em pedaços, os rins alquebrados, os olhos míopes e astigmáticos. Sinto uma forte atração pela homeopatia, argumento de peso para me libertar do alto custo dos venenos ministrados pelo doutor Schimdt. Prefiro água de tília e flor de laranjeira a um só grão de morfina. Semana passada fui pela primeira vez à farmácia dos discípulos de Hanehmann, aquele da rua dos Ourives. A conversa dos clientes é pavorosa, como se fossem um bando de alienados.; ;Machado reconhece nos dois casos a manifestação cruel da loucura. Sente uma atração indefinida pelo caso de Helena, como se quisesse aprofundar-lhe as circunstâncias que levaram ao homicídio. Deslindar a fina camada, porventura existente, entre a as malhas da justiça e os deveres da medicina. Seria o caso, afinal, de se ampliar, como se disse mais tarde, o território da loucura?; ;Não me preocupei com razões de ordens filológicas. Uma edição crítica poderá ser feita um dia, cotejando-se o manuscrito, mas não vejo nisso vantagem. Vale registrar que todos os diálogos desse diário são reproduções das mais diversas fontes. Não pertencem a mim e tampouco ao seu autor.; ;Machado e meus contemporâneos não terão acesso a estas páginas. Vou depositá-los na arca do sigilo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e manifesto claramente o desejo de que esses rabiscos só poderão ser abertos depois do dia 6 de novembro de 2010, quando serei um espectro, assim como os personagens desse libelo.; TRECHOS DO LIVRO "Meu pobre estômago em pedaços, os rins alquebrados, os olhos míopes e astigmáticos. Sinto uma forte atração pela homeopatia, argumento de peso para me libertar do alto custo dos venenos ministrados pelo doutor Schimdt. Prefiro água de tília e flor de laranjeira a um só grão de morfina. Semana passada fui pela primeira vez à farmácia dos discípulos de Hanehmann, aquele da rua dos Ourives. A conversa dos clientes é pavorosa, como se fossem um bando de alienados." "Machado reconhece nos dois casos a manifestação cruel da loucura. Sente uma atração indefinida pelo caso de Helena, como se quisesse aprofundar-lhe as circunstâncias que levaram ao homicídio. Deslindar a fina camada, porventura existente, entre a as malhas da justiça e os deveres da medicina. Seria o caso, afinal, de se ampliar, como se disse mais tarde, o território da loucura?" "Não me preocupei com razões de ordens filológicas. Uma edição crítica poderá ser feita um dia, cotejando-se o manuscrito, mas não vejo nisso vantagem. Vale registrar que todos os diálogos desse diário são reproduções das mais diversas fontes. Não pertencem a mim e tampouco ao seu autor." "Machado e meus contemporâneos não terão acesso a estas páginas. Vou depositá-los na arca do sigilo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e manifesto claramente o desejo de que esses rabiscos só poderão ser abertos depois do dia 6 de novembro de 2010, quando serei um espectro, assim como os personagens desse libelo."

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