Já é noite, por volta das sete, quando o motorista do Palio prateado encosta o carro no portão. Nada. O rapaz de uniforme amarelo nota o visitante, mas não acelera o passo. Cruza lentamente o terreno asfaltado. O céu ainda está claro ; ninguém precisa correr com o trabalho. Só depois de buscar a cadeira de plástico, destrava o cadeado. No banco de carona, a mulher parece impaciente. ;O cinema ainda existe?; O garoto não se espanta: de tanto ouvir a ladainha, pegou hábito. No mais, sempre há casos piores. Uma gente desnorteada que pergunta sobre o autódromo, os karts; tudo menos filme. Ou que toma a pista errada e acaba caindo ali, naquele cenário de faroeste. Uma tela gigante, o silêncio e quase nada mais.
O espetáculo ainda está para começar. Solitário na bilheteria, Victor Emmanuel, 17 anos, dá as coordenadas aos forasteiros. Aponta os cartazes, explica as leis da ;cidade;, informa preços e horários. Estamos na área central do Plano Piloto, atrás do ginásio Nilson Nelson, a uma caminhada curta do Eixo Monumental. Mas, apesar do endereço acessível, o Cine Drive-in se camufla na paisagem. Desde agosto de 1973, só interrompeu a programação uma vez ; no fim dos anos 1980, ameaçado pelo desinteresse do público. Diariamente, é como se obedecesse as regras de uma outra realidade. Os multiplexes de shopping, a pirataria, as crises no governo local, os altos e baixos da economia: nada treme o cotidiano moroso daquele que orgulhosamente se define como o ;maior e melhor cinema ao ar livre do país;.
Se o slogan soa datado, é que no Brasil essa ideia de diversão ficou no passado. Caiu de moda. Para os mais nostálgicos (e os mais espaçosos), no entanto, o último Drive-in do país ainda inspira viagens à época das matinês sobre rodas. Mal sabem que esse clima de encantamento é preservado graças às mãos firmes de duas mulheres comprometidas com uma tradição. ;É uma questão de apego;, define a nutricionista Marta Fagundes, 51 anos, que administra o cinema desde o início dos anos 1990. ;Depois que descobri esta tela, as outras ficaram muito pequenas. Foi amor à primeira vista;, confessa a projecionista Marisa Pereira da Silva, 45.
Juntas, elas comandam os bastidores de um show silencioso. Marta gerencia os quatro funcionários e programa os filmes. Mas é Marisa quem cuida das películas como quem nina uma criança ; quando necessário, quebra galhos na cozinha, atendendo os pedidos dos espectadores. Durante a semana, mora lá mesmo, numa casa de madeira embaixo da tela de 312m;, onde antes funcionava uma churrascaria. O maridão, José Ednaldo, a ajuda a fechar o portão todas as noites, quando a escuridão dá calafrios. Nos fins de semana, a piauiense de União visita a família na Cidade Ocidental. ;Sou muito de muvuca;, diz. ;Dá uma solidão quando o filme acaba. Na hora de desligar tudo, bate o vazio. Mas aí você vê a lua, as estrelas; O Drive-in pode ser muito romântico;, nota.
Um certo grau de resistência a noites silenciosas é obrigatório para quem trabalha no Drive-in. Até os motores mais avariados cooperam. Na primeira sessão, que começa às 20h10, mal se ouve bate-papo ou comilança de pipoca. O panfleto xerocado dá as regras: quer pedir lanche? Acenda o farolete. Em caso de emergência? Pisca-alerta. Para captar o som do filme, sintonize a rádio na frequência 88,7. Quem não tem o aparelho recorre a duas caixas de som, reservadas para esse tipo de ;aperto;. Victor, lá da bilheteria, não precisa de nada disso. Acompanha os diálogos pelo rádio do celular. Cada um se vira como pode, mas a tela abraça todos. Ainda que muitos prefiram estacionar o carro em cantos discretos do estacionamento e mudar a estação. Os funcionários entendem a senha: é namoro.
Sem apelação
Não é de hoje que o preço camarada (que varia de R$ 14 a R$ 16, a depender do dia) e a segurança atraem casais mais aflitos. O estigma de ;ninho do amor;, no entanto, incomoda Marta. ;Se eu quisesse estimular esse comportamento, programaria filmes pornô. Daria mais dinheiro. Mas isto não é um motel;, decreta. De fato, as sessões rejeitam ofertas apelativas e dão prioridade a comédias românticas, fitas de ação e filmes brasileiros de sucesso, como Tropa de Elite. Só evita o terror ; tanto ela quanto Marisa detestam o gênero. Nas sessões infantis, as crianças não dispensam a companhia do totó. Mas, apesar da impressão de que nada muda os costumes desta ;família;, Marta se preocupa que, em véspera de Copa do Mundo, o governo local decida usar o Drive-in, vinculado à Secretaria de Esporte, para outras finalidades.
Defender o cinema, por isso mesmo, se tornou uma questão de honra. Recentemente, a gerente aceitou participar de um documentário sobre o Drive-in, que ainda está em fase inicial. ;Só eu sei como faço para manter este cinema por minha conta, sem parceria. Mas ele vai muito bem;, avisa. Para Marisa, a ligação afetiva também pesa. Projetar filmes é a vida que ela escolheu em dezembro de 1987. Trabalhava como empregada doméstica quando fez teste para os cinemas do ParkShopping. Desde então, a vida virou um longa intimista, exibido também no Liberty Mall e no Dois Candangos. O coração apertou por Cinema Paradiso e pelo iraniano Gabbeh. Antes da estreia de Independence day, a ansiedade era tanta que tremia quando adaptava a película ao projetor.
No dia a dia, Marisa trata o cinema como um doce lar. As imagens fazem companhia, espantam a tristeza, estão sempre lá. Enquanto as cenas de ação do thriller 72 horas, com Russell Crowe, brilham na telona, ela se refugia nas 14 polegadas da tevê, atenta às movimentações da novela. Às vezes não há como ignorar o ;reality show; fogoso dos namorados que estacionam perto das luzes do banheiro e, sem perceber, se transformam em atores principais de um filme proibido. Mas isso já perdeu a graça. Para evitar o calor da sala de projeção, ela se senta na cadeira de plástico e observa as imagens sem som lá do jardim. ;Quando fui ao cinema pela primeira vez, aos 22 anos de idade, foi um sonho. Eu queria era ficar lá pra sempre;, lembra. Depois da meia-noite, quando termina a última sessão e não há carros no estacionamento, restam a tela gigante, o silêncio e Marisa. Ela fica.
PÚBLICO TÍMIDO
Na sessão acompanhada pelo Correio, numa terça-feira, apenas oito carros ocupavam o estacionamento do Drive-in. Nos fins de semana, o público aumenta. No total, são cerca de 300 pessoas por semana. Um número bem inferior aos cerca de 600 carros que lotavam as sessões de Os embalos de sábado à noite (1977), com John Travolta.
BRASIL NA TELA
Há três anos, o Cine Drive-in ganha reforço financeiro do governo federal pelo Prêmio Adicional de Renda, do Ministério da Cultura. Em contrapartida, exibe filmes brasileiros pelo menos 28 dias por ano. O dinheiro (em média R$ 10 mil) é investido na manutenção da área. Mas o cinema ainda precisa esperar que filmes como Tropa de Elite 2 circulem nos cinemas comerciais para depois exibi-los. Daí o atraso nas estreias, que já foi maior. Titanic (1997), de James Cameron, chegou ao
Drive-in um mês depois dos cinemas de shopping.
CINE DRIVE-IN
Área Especial do Autódromo. Sessões diárias às
20h10 e às 22h30. Hoje, exibição dos filmes Megamente, às 20h10, e 72 horas, às 21h30. Ingressos: R$ 14 e R$ 7 (meia), de segunda a quinta, e R$ 16 e R$ 8 (meia), de sexta a domingo. Telefone: 3273-6255.