É manhã e alguém bate à porta da casa do cantor gaúcho Julio Reny. Pelo olho mágico, ele vê um punk completo, com cabelo moicano, alfinetes e calça rasgada. ;Bah, estou sonhando!”, pensa. ;Sou eu, Julio, o Wanderley!”, diz o rapaz do lado de fora. Julio demora um pouco para reconhecê-lo. ;Tudo bem, Wanderley? Qual a novidade?;, pergunta. ;Agora eu sou Wander e a novidade se chama Replicantes.;
Julio Reny e Wander Wildner já se conheciam de bastidores de shows em Porto Alegre e das gravações do filme Deu pra ti anos 70 (no qual os dois participaram como atores ; procure no YouTube, tem cenas hilárias).
Mas foi a partir do episódio acima (passado, provavelmente, em 1983), que a amizade entre eles se intensificou. Os Replicantes, seminal banda do punk rock brasileiro, passaria a ensaiar na garagem de Julio. Ele, por sua vez, controlava a mesa de som dos shows do quarteto.
Wander e Julio têm trajetórias distintas, mas muita coisa em comum ; desde o estilo de vida meio beat até as influências sonoras. E os dois estão lançando discos: Caminando y cantando, do bardo punkbrega, e Bola 8, do caubói espiritual.
O sexto álbum de estúdio de Wander foi pensado na estrada, entre andanças por Buenos Aires, Montevidéu e Berlim. Na capital alemã, o cantor começou a escolher o repertório e a formatar o conceito do disco. Caminando y cantando é um disco essencialmente acústico e de intérprete. Wander compôs sozinho apenas uma das faixas, As coisas mudam, que abre o disco e foi inspirada no filme O pequeno grande homem. Outras duas são parcerias: Puertas y puertos, com o uruguaio Santiago Guidotti, da banda Sonito Top, e Calles de Buenos Aires, com Arthur de Faria e Jimi Joe (este, guitarrista da banda de Wander há uma década).
O restante do repertório é formado por músicas dos anos 1970 (como A palo seco, de Belchior, e Viajei de trem, de Sérgio Sampaio), 1980 (Amor e morte, do amigo Julio Reny) e de compositores mais jovens (caso de Gustavo Kaly, da banda catarinense Stuart). ;Eu queria, com o disco, mostrar minhas influências de folk, que ouvi muito nos anos 1970, tanto o nacional, como Zé Ramalho, quanto o internacional, como Neil Young e Crosby, Stills & Nash. Escolhi músicas daquela época, uma do Julio, que pra mim foi uma grande referência nos anos 1980, e outras do pessoal de agora;, comenta Wander, 51 anos.
Recomeço
Após o fim de uma relação de 10 anos, Julio Reny foi afogar as mágoas na boemia, um período de recomeço de vida marcado por muitos bares e noitadas. ;Depois de uma tempo, vi que aquilo não ia me levar a lugar algum, era uma ilusão;, pondera o cantor, também de 51 anos. Ele passou a dedicar suas noites à composição das músicas que entraram em Bola 8. ;Se eu não ficasse em casa compondo e gravando teria metido uma bala na cabeça. Foi um baque forte, tive uma depressão fortíssima;, conta.
O plano original era fazer um disco sombrio, mas Julio mudou de ideia. Ainda assim, o novo álbum reflete nas letras muito de sua vida nos últimos dois anos, mas sem adotar um tom depressivo. O título do CD, aliás, vem daí. ;Quando a cara está mal, dizem que ele está ;pela bola oito;. Mas a bola oito é também a bola da vitória,
decisiva, do tudo ou nada;.
A opção por um álbum todo acústico deixa Caminando y cantando um tanto cinzento, sem muitas nuances. O tipo de disco que as partes tem mais peso do que o todo. Mas Wander sempre soube escolher seu repertório ; e com isso joga luz em compositores de talentos ainda desconhecidos. Intérprete apaixonado, ele dá às músicas um tratamento todo pessoal, transforma-as em canções suas, sem precisar reinventá-las.
Julio Reny representa um papel muito em falta no Brasil, o do roqueiro maduro, que não abandona a guitarra nem as boas ideias com o passar dos anos. Com menos músicas (o disco passa de uma hora de duração), Bola 8 ficaria, com o perdão do trocadilho, mais redondinho. Mas não dá para reclamar de um repertório, no geral, muito inspirado, feito ainda no calor dos acontecimentos. Acompanhado dos competentíssimos Irish Boys, Julio gravou músicas que podem até não se tornarem hits, como foi Amor e morte nos anos 1980. Mas Vanessa e Onde as pontes se cruzam, por exemplo, estão entre as melhores que ele já fez.