Em uma encenação, a plateia acompanha o espetáculo às margens de uma via subterrânea e sombria, como se estivesse diante do leito de um rio. Em outro cenário, o público se acomoda dentro de uma enorme panela, sendo cozido como prato principal de uma refeição. Essas são algumas das ideias inusitadas presentes em quatro projetos de cenografia e figurino concebidos por alunos da Universidade de Brasília (UnB) e selecionados para um dos principais festivais de teatro do mundo, a Quadrienal de Praga, na República Tcheca.
No evento, que será realizado entre os dias 16 e 26 de junho de 2011, os projetos vão ser expostos, por meio de maquetes e ilustrações, em uma das seções competitivas, a Mostra das Escolas. O espaço vai abrigar trabalhos nas áreas de cenografia e figurino originários de centros educacionais de 62 países. Para o processo seletivo do Brasil, sete universidades e cinco escolas inscreveram 50 projetos, dos quais 30 conquistaram vaga na Quadrienal.
Um projeto da UnB, A terceira margem do rio, foi considerado o melhor pelo júri, enquanto outro da mesma instituição, Família à moda da casa, ficou em terceiro lugar. A segunda posição foi dada a Infinito particular, realizado por uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essas colocações não foram divulgadas oficialmente. Elas foram informadas ao Correio pelo professor da USP Fausto Viana, responsável por definir o corpo de jurados e integrante da curadoria da etapa nacional da mostra. No entanto, ele não quis revelar as demais colocações. "Isso só estimularia a competição boba", justifica.
Foi Viana quem convidou para participar da seleção a orientadora dos trabalhos da UnB, a professora do departamento de artes cênicas Sonia Paiva. Ela buscou seguir a recomendação da organização da Quadrienal e conseguiu reunir grupos interdisciplinares, formados por 17 alunos de cinco cursos diferentes: artes cênicas, artes plásticas, arquitetura, desenho industrial e audiovisual. "Foi muito difícil juntar esse pessoal", recorda. "A interdisciplinaridade é uma batalha cada vez maior na universidade. Cada departamento fica no seu buraco."
A UnB foi a única instituição do DF que inscreveu projetos. A ida a Praga e, ademais, as boas colocações na disputa surpreenderam a equipe. "Acho que eles (da organização nacional) não esperavam que Brasília fosse se destacar tanto", comemora Sonia. "O melhor de tudo é poder estar lá (na Quadrienal) vendo o que se produz atualmente em cenografia. E lá tem workshops e oficinas de tudo que é jeito. Vai ser uma oportunidade única", complementa. "E se alimentar de todo esse caldo cultural, conversar com criadores do mundo todo", acrescenta a aluna de artes plásticas Maria Eugênia Matricardi.
Paisagens mirabolantes
Na criação de projetos de cenografia e figurino, os universitários não precisavam escrever peças de teatro, mas construir cenas e situá-las em espaços não convencionais dentro do campus da UnB. Eles deveriam esquecer os modelos de palco tradicionais, como o italiano. Também foram orientados a escolher motivos locais. "Como é uma mostra competitiva internacional, Fausto (Viana) falou que trabalhássemos uma coisa nossa, dando preferência a temas regionais", observa a estudante de artes cênicas Marcela Siqueira.
O já citado A terceira margem do rio, baseado no conto homônimo de Guimarães Rosa, inicia-se no térreo do Instituto Central de Ciências (ICC), o popular Minhocão, e avança por 275 metros do subsolo do mesmo prédio. O público teria que caminhar conforme o andamento do espetáculo. O rio da história seria simulado pelo vão de uma via de trânsito subterrânea. O projeto foi criado pelos estudantes de artes cênicas Hugo Cabral, de artes plásticas Julia Gonzales e de arquitetura Raquel Moraes.
O projeto Família à moda da casa, adaptado da peça homônima de Flávio Márcio, é situado no fosso do Teatro Helena Barcelos, do departamento de artes cênicas. A plateia ficaria acomodada em uma panela gigante, que se chega por um escorregador. A ação dos personagens se daria na parte de fora da panela e seria acompanhado pelos espectadores por meio de espelhos colados ao teto. O trabalho foi elaborado pelos estudantes de cênicas Marítissa Arantes, de desenho industrial Patrícia Meschick e de arquitetura Ana Luiza de Oliveira.
A entrada da ala norte do ICC, também conhecida como Ceubinho, foi o local escolhido para o projeto Carolina ou a vida das meras obscuras. Ele se baseou em poemas da goiana Cora Coralina e em sua biografia. O cenário começa simulando, por meio de uma vasta cortina, a fachada da Casa Velha da Ponte, onde Cora viveu grande parte da vida, na Cidade de Goiás. Em um espaço seguinte, o interior da residência é disposto com móveis coloniais. O grupo é composto pelos alunos de arquitetura Luiz Eduardo Sarmento, de artes plásticas Maria Eugênia Matricardi, de audiovisual Maria Vitória Canesin e de cênicas Rogério Luiz.
O projeto Simplicidade: o imaginário de um grande coração vermelho, também se baseia em poemas de Cora e é alojado em dois andares do Edifício Multiuso 2. O espaço, que deveria ser percorrido pelo público durante a encenação, foi definido por apresentar parentescos com a estrutura das casas da Cidade de Goiás. O prédio privilegia, por exemplo, a visão do espaço exterior por meio de vedações vazadas ou translúcidas, circulações abertas e varandas. Os mesmos recursos são utilizados no casario colonial daquela cidade. A equipe responsável pelo projeto é formada por Eric Costa, graduando de artes cênicas, Marcela Siqueira, do mesmo curso, Pedro Moura, de arquitetura, e Pedro Vianna, de plásticas.
O desenvolvimento dos projetos foi feito durante dois meses, em laboratório iniciado em setembro e ministrado pela professora Sonia. "Mostrei a metodologia de trabalho, mas cada um pirou do jeito que quis. Apenas vinham com perguntas e eu sugeria soluções", explica. Ela pretende transformar o laboratório em um projeto de extensão permanente da universidade. "No Brasil inteiro, essas áreas (cenografia e figurino) são pouco desenvolvidas. Há poucas pessoas trabalhando com isso", justifica. "Quero abrir as aulas para outros projetos da cidade e tentar melhorar o teatro de Brasília."
Usina de ideias
Entre os 30 projetos brasileiros selecionados para a Quadrienal de Praga, 20 foram criados por instituições do estado de São Paulo. Em seguida, vem o Distrito Federal, com os quatro trabalhos da UnB, Rio de Janeiro (dois), Rio Grande do Norte (dois), Pará (um) e Santa Catarina (um). Todos os trabalhos inscritos na seleção nacional foram expostos na USP no começo deste mês. Em 2011, antes de irem à República Tcheca, os selecionados vão ser novamente expostos em local ainda não determinado.
O numero de centros de ensino, 12, quase dobrou em relação à última seletiva, em 2007, quando havia sete dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Pará. "Demos um salto qualitativo muito grande, foi um resultado surpreendente", elogia Fausto Viana, membro da curadoria. Segundo ele, a ideia é que a seletiva seja um processo pedagógico, mais que competitivo. "Em todo o país, os professores de cenografia são um grupo muito pequeno. Temos que estimular em nossos alunos a colaboração, não a competição."
A participação na Quadrienal reforça o currículo dos alunos.
"Ter sido selecionado para uma mostra internacional faz com que você seja visto e comentado por muita gente. Além disso, é uma chance de o próprio aluno ver o nível de escolas do mundo todo e aprender com isso", avalia Viana