Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Novo livro de Evandro Affonso Ferreira é amargo, pesado, mas profundo

Evandro Affonso Ferreira, escritor" />Com caráter introdutório, uma citação do cético filósofo inglês David Hume ; que trata do suicídio ; compara a existência humana à de uma ostra, fornecendo as coordenadas do universo amargo registrado em Minha mãe se matou sem dizer adeus. Aos 80 anos, o narrador à beira da morte, filho de ;mãe feia, bêbada, louca; e degradado pelo tempo, sublinha a tristeza de partir, não por deixar a vida; mas por ;nunca ter estado nela;. ;Velho tempo todo;, teve a juventude amputada diante das sucessivas perdas e de caudalosa aflição. No filete de vida, além dos remédios e das lembranças, rancor, acidez e o tom irascível se agregam num inventário emocional, ironicamente, liberto de herdeiros.

;Quando você crescer, tente viver o menor tempo possível ao lado das pessoas: elas são nocivas;, introjeta a mãe do título no filho que, passadas décadas, regozija com diálogos telepáticos mantidos com amigos inventados. De uma ;mesa-mirante; de confeitaria, naquele apontado como derradeiro dia de sobrevivência, o narrador aplaina calombos como a carência filial e o depressivo retraimento (;intransferível;), ao mesmo tempo em que escreve ;para não esvaecer;.

Quinto livro do mineiro Evandro Affonso Ferreira, o romance deixa transparecer, na concisa densidade de estilo, a longínqua carreira de redator publicitário. Graciliano Ramos e Cornelio Penna, ao lado dos expatriados Samuel Rawet e Bruno Schulz, pairam como ;deuses; assumidos por Affonso Ferreira. Estabelecido em São Paulo, o escritor que morou em Brasília até admite a opressão dessas cidades impressas na obra, mas prefere acreditar que é a própria vida claustrofóbica que o leva à exploração de temas ;assim tão angustiantes;.

Fatalista, o narrador, mesmo em dinâmico ambiente público, é incapaz de reverberar qualquer sinalização de harmonia, como quando não retribui o sorriso de uma mãe de recém-nascido, por desprezar ;intimidades com o futuro;, já que está inserido numa ;vida amorfa;. Carrasco sem autocomiseração, ele define ;a própria invisibilidade;, sem expectativas nos potenciais interlocutores.

Pontuando a não existência, o octogenário recebe pistas efetivas dessa sina: ;Moça muito bonita muito jovem ali na quinta mesa à direita não me olhou várias vezes; sei porque olhei para ela o mesmo tanto que ela não me olhou;. Além das sistemáticas intromissões de uma amiga filósofa (a postos para conselhos ou prospecções teóricas), resta ao velho a companhia de um bem-humorado grupo de judeus que se avizinham nas outras mesas.

Decrépito e feio
Remanescente de um circuito drummondiano, em que ;pai batia na mãe, que ignorava o filho, que odiava o pai;, o narrador (15 anos mais velho do que o autor) sublinha que ;não há similitude entre decrepidez e estética;. A constatação é pavimentada pelas ;indelicadezas; reservadas para a etapa final de alguém que veio ;ao mundo por descuido;. Obcecado por ;cortar a teia da própria vida;, o idoso também revela um exagerado apreço por expressões como in totum (leia-se, completamente) e construções, por vezes, exageradamente barrocas e atravancadas, como ;velhice é bumerangue amnésico cujo súbito esquecimento lhe permite concluir apenas o trajeto de ida;.

Comungando de ideais demarcados por Virginia Woolf, Evandro Affonso Ferreira a insere, comedidamente, no livro. Acostumado a olhar ;de soslaio os amanheceres;, o narrador atinge potente carga de emoção, ao descrever, no entremeio do trivial e do cáustico, momentos da infância, como o choro no primeiro banho sozinho (sem a mãe) ou ainda as associações da orfandade materna com a trilha sonora de Billie Holiday ou o cheiro floral do velório. A rejeição ao comezinho se expõe na autoanálise: ;Às vezes penso que nasci apenas para escrever; não nasci para viver; escondo-me atrás das palavras;.

Por um ano, condicionado a rigorosos turnos matutinos e vespertinos (de duas horas, cada) na composição da obra criada numa mesa de shopping paulistano, o autor prima pela coesão, num texto sólido na descrença e que jamais se rende a divagações palatáveis. Vale mesmo é deleite da ;igualdade absoluta; entre os homens, assegurada na morte, e mais do que isso: a curiosidade textual impressa no pensamento de que se ;a vida é misteriosa; o reverso é possivelmente bem mais misterioso;.


Minha mãe se matou sem dizer adeus

De Evandro Affonso Ferreira.
Editora Record, 128 páginas.
Preço: R$ 27,90.















TRÊS PERGUNTAS // EVANDRO AFFONSO FERREIRA


Como será o próximo livro da trilogia para a Record, iniciada com Minha mãe se matou sem dizer adeus?
O segundo livro chama-se O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Conta a história de mendigo erudito à beira da loucura esperando amada que o deixou dez anos atrás. Não perde a esperança minuto sequer. Fala debaixo de um viaduto com interlocutor possivelmente imaginário sobre sua amada e sobre os adágios e sobre os mendigos bêbados alcoólatras que estão à sua volta e sobre o maior erudito do século 16 (Erasmo de Rotterdam).

O que mudou na escrita, em termos de formatação, com Minha mãe;, o teu quinto livro? No livro, há qualquer carga autobiográfica?
Em termos de estilo, muito foi modificado. Deixei de lado o cuidado excessivo com a forma; meu planetinha-sonoro ; como bem, diz o amigo-escritor Juliano Garcia Pessanha na orelha do livro. Fiquei mais reflexivo ; mais à beira da morte por assim dizer. Quanto aos traços autobiográficos, há quase nenhum e, ao mesmo tempo, tudo. Minha mãe não se matou ; evidentemente. Mas Bovary sou eu ; diria Gustave Flaubert ajudando-me na resposta.

Vim vi perdi é outra publicação em andamento;
Sim. História de sujeito fracassado que sai de seu quarto imundo às seis da manhã e não quer voltar nunca mais para casa. Fica andando pela cidade entrando em cemitério em parques em praças públicas tantos outros lugares e pensando nela sua própria vida inútil de perdedor aos 70 anos de idade.