Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Filme de estreia de Sophie Barthes traz inspirações de Woody Allen

O filme de estreia da francesa Sophie Barthes pode até começar com citação a René Descartes, que identificou a alma como ;uma glândula no meio do cérebro;, mas as verdadeiras inspirações, abertamente, apontam para Dorminhoco (1973), de Woody Allen; para Jean-Luc Godard e para análises conscientes junguianas. Território fértil para experimentação que contemple a tríade Charlie Kaufman (Sinédoque Nova York), Michel Gondry (O brilho eterno de uma mente sem lembranças) e Spike Jonze (Quero ser John Malkovich).

Absolutamente atrelado ao cinema independente, o ator Paul Giamatti (de Sideways e A dama na água) ; que, num registro hiper-realista, interpreta a si próprio ; dá lastro à premissa nonsense: ;voláteis;, as almas contemporâneas entram na lei da oferta e da procura, como qualquer mercadoria. Anti-herói das situações-limite, Giamatti ; absorvido pela crise como uma palavra de ordem ; está neurótico e sufocado, diante da angústia e da negatividade. Ao ler a revista The New Yorker, ele chega ao esquema das páginas amarelas, passível de dissolver os indícios de solidão e nostalgia. ;Felicidade não é fazer as pessoas à sua volta acreditarem que está feliz;, explica o cientista responsável por processo de extração de almas (papel a cargo de David Strathairn, de Boa noite e boa sorte).

Melhor ator em festival de Karloy Vary (República Tcheca), Giamatti é a razão de ser do longa, imperando em cenas como a da inadequada interpretação no palco para versão de Tio Vânia (do russo Anton Tchekhov). Para além dos gracejos com a inclinação soviética ;para a autopiedade;, o roteiro estabelece uma curiosa ponte entre americanos e russos ; com efetivo escambo das almas comercializadas. Numa narrativa intrigante, Nina (Dina Korzun) é uma ;mula; utilizada pelo tráfico espiritual.

Almas à venda
(Cold souls, EUA/França, 2009). De Sophie Barthes. Com Paul Giamatti, David Strathairn, Dina Korzun, Katheryn Winnick e Emily Watson. Paramount, drama, 101min. Não recomendado para menores de 12 anos." />Do tamanho de um grão-de-bico, a alma de Giamatti encerra uma interessante analogia que expõe um paralelo com a consciência do vazio de algumas existências menos nobres da atualidade. Divertido, o leque de opções para o desalmado protagonista (à caça de negociar uma alma à altura da dele) compreende a alma de compositor brasileiro e zoações com a anima de Robert Redford (o tutor do Festival de Sundance, não por acaso, um dos apoiadores da fita), Al Pacino e George Clooney.

Com desfecho em São Petersburgo, o longa-metragem de Sophie Barthes prima por cercar (sem exagerada pretensão) dilemas muito individuais, justo na era do egocentrismo. Imersa em completo plano de liberdade criativa, ela consegue não radicalizar em demasia, driblando a possível rejeição do grande público. Em última instância, Almas à venda é um engraçado exercício em torno da afirmação da identidade do ser humano e da metalinguagem, mas com excessiva perseguição ao campo onírico, num fim deslocadamente poético.