Na última terça-feira, ecoou, no Cine Brasília, o nome de Andrade Jr. Quem gritava era uma plateia acostumada a vê-lo nas telas em dezenas de curtas e longas-metragens. Homenageado pela Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo (ABCV), o ator é mesmo a figura mais onipresente do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. ;Participo de tudo, até de filme de celular;, conta o cearense, que veio para a cidade na construção. Ator autodidata, Andrade Jr. ajudou a construir as artes cênicas do DF. Hoje, encontrou no cinema um lugar de mestre, cultuado, sobretudo, pela novíssima geração de jovens aspirantes a cineastas. ;Faço um filme de iniciante que, daqui a pouco, vira um bambambã. É o caso do Santiago Dellape, que fez esse filme maravilhoso, Ratão;, conta.
O povo fala que você é a figura mais onipresente do cinema brasiliense. Como entrou em contato com essa galera jovem, sobretudo?
Os jovens gostam mais de mim do que os mais velhos. Ainda bem. É bom. Mas eu era do teatro. Cinema começou há pouco tempo aqui em Brasília. Mas eu já fiz cinema com Roberto Pires, o baiano. Foi Césio 137 (1989) e, por sinal, meu personagem não morreu ainda. Era irmão do dono da oficina. Ele enfiou o dedo no negócio lá e perdeu o dedo e a perna. Mas está vivo. De lá pra cá, foi ótimo. Fiz um filme também que passou demais, Defunto vivo, curta-metragem do Joaquim Lopes Saraiva. Nessa época, era interessante, passava o curta e um longa logo depois. Quando começava o longa, o pessoal gritava ;para, para!”. Aí, eles passavam o curta de novo. Às vezes, repetiam cinco vezes. O curta não tem distribuição no Brasil. Só passa em festivais e acabou. Um filme igual a esse Ratão, que tem uma produção de longa-metragem, chiquérrima, vai ficar sem fazer público. A sorte é que vai passar, no Cine Brasília, ainda neste mês, com o longa Federal.
Normalmente, encaram o curta só como uma prévia do longa que está vindo. Os distribuidores poderiam valorizar o curta, investir mais em festivais para curtas, treinar, incentivar a plateia a apreciar o curta, não?
Todo mundo gosta de curta. Mas não tem a cultura de segurar o curta-metragem nas telas. Eu adoro curta-metragem. O longa, se não for muito bom, durmo na hora. Eu dormi até no Tropa de Elite. Não consegui assistir até hoje. Se fosse curta, seria ótimo. É uma pena que eles veem o curta como um tira-gosto.
Dizem que você não rejeita nada. Até filme de celular você tá topando.
É verdade. Quando me chamam, eu topo. Agora, tem gente que fica com medo, porque está velho, é famoso. Famoso p... nenhuma (risos).
Mas por que você não rejeita?
Gosto muito de cinema. Ainda mais quando o pessoal está começando. Adoro fazer filme universitário, qualquer filme. Só vai acrescentar para mim. O pessoal fica amigo meu. Daqui a pouco, todos viram diretores bons. Há uns que começam com filmezinho ruim, mas depois melhoram. Santiago Dellape. Ele hoje é excelente, mas começou com filmezinho. E vai ser um grande diretor.
E essa história que você fez até um japonês, um samurai?
É um japonês cego. Por sinal, muito ruim, o filme.
Você acha que o cinema está dando um lugar pra você que o teatro não deu aqui em Brasília?
O teatro me deu um lugar, eu é que sou preguiçoso. O pessoal de teatro me adora. Mas sou preguiçoso para teatro. Ainda mais o processo de teatro, eu não suporto o processo. Por exemplo, acho ótimo a peça estar pronta e um ator sair. Já ensaiaram seis meses. Um ator sai e dizem ;Andrade, tem uma vaga aqui;. Aí é comigo mesmo. Eu não entendo também a concentração deles. Eles ficam de cabeça pra baixo, o outro acende uma vela, o outro reza. E não posso falar com ninguém. Quando falo com alguém, a pessoa grita ;rapaz, estou concentrado!” Sou um legítimo autodidata.
Como você começou a fazer teatro?
Eu não tive aquele processo de aprendizado. Eu faço teatro desde 1963, quando tinha 17 anos. Era presidente do grêmio estudantil em Sobradinho, trabalhava com Paulo Freire. Ali que o pessoal aprendeu a ler. E aí, eu estava no colégio e apareceu um cara do Rio de Janeiro, Jurandir Monteiro, que começou a estudar, na primeira série do ginasial. Ele era um senhor, um cara sabido, de teatro, culto. Não tinha instrução, mas ele sabia de Shakespeare, de Brecht. De tudo ele entendia. E aí ele bolou um negócio e eu fui ser assistente de direção. Não sabia nem o que era. O ator principal saiu, dois dias antes de apresentar. Saiu e só tinha eu, e tinha decorado já, estava ali junto. ;Eu faço;, falei. Foi a primeira vez que fiz. E acho que acostumei. Engraçado, né? Eu achei mais fácil.
Como é a sua relação com a televisão?
Fiz um trabalho no ano passado na Globo. Eu vivi o Nilton Santos, jogador de futebol. Tive que jogar o dia todinho numa praia lá do Rio. Era o Nilton velho. E ficou lindo.
Qual a sua visão de novela? É ópio, é um reconhecimento?
Acho que novela podia ter outro espaço, se ela fosse seguida sem fórmula. Agora mesmo passou um filme no Festival de Brasília, Amor? Eles fizeram uma novela. Aqueles atores não têm expressão nenhuma para falar a verdade. Cadê a verdade? Ninguém acredita. Um dia antes, passou um curta de uma senhora lá oprimida no Recife (Acercadacana). Ela mora em meio hectare de terra, e o empresário mora em 28 mil. Mas, quando foi entrevistada, o pau quebrou. Agora, se fosse um ator pra fazer aquilo, não daria.
Você acha que hoje está mais fácil fazer teatro em Brasília do que na época que você começou, de forma mais amadora?
Eu não sei, acho mais fácil antes. Sempre fui do teatro mais vagabundo, nunca fui top. Eu fazia quando me chamavam. Tinha um baiano maravilhoso, Fernando Freire. Nós fizemos A volta do urubu gabiru, uma peça bastante política, e era na época da ditadura. A gente esculhambava o governo. Era o tempo do Figueiredo. O diretor da Secretaria de Cultura ficava do lado de fora do teatro, dava o dinheiro e ficava vigiando com medo que chegasse os militares.
Da sua geração, quais atores você destacaria?
Humberto Pedrancini, um grande ator. Adoro. Gê Martú também. E tem um bocado de gente boa aí. Eles estão estudando mais. Jones Schneider tem uma voz muito boa. Adoro os atores de Brasília.
O que falta para o teatro de Brasília engrenar de vez? Apoio financeiro, mais espaço, mais reconhecimento do público?
Mais temporada para o teatro. Nós não temos. Num ano, a gente se apresenta durante duas semanas. A média da temporada é muito baixa. Eu tenho um exemplo absurdo. Foi uma peça, Noise off, que fizemos no Teatro Plínio Marcos. A peça tinha uma produção de primeira. Tinha atores daqui. De quinta a domingo, três meses em cartaz. O teatro não tinha cadeira. Colocamos cadeiras. Cabiam 400 cadeiras, ficavam 300 no chão e 500 lá fora. Todo dia era uma confusão pra trancar a porta. A peça boa, produção benfeita... Isso foi em 1995. Os Melhores do Mundo não chegavam nem perto. Era uma peça inglesa, o Banco do Brasil patrocinou. Tenho até hoje os panfletinhos lá em casa.
Você já fez quantos filmes?
Mais de 55, eu acho. Fui olhar agora, tem um bocado que eu não tinha visto. Só que não assisti a todos. Filmei com o (Afonso) Brazza um filme do Nelson Pereira do Santos, A terceira margem do rio. Ele era muito meu amigo, mas nunca fiz filme do Brazza. Tinha que ir pro Gama, era complicado.
Você sente ainda emoção ao se ver na tela?
Eu adoro. Não gosto até hoje da minha voz. Você nunca se acostuma. Mas estou melhorando. No começo, não podia nem ouvir, achava péssimo. A voz é o pior negócio do mundo. O problema mesmo é que eu digo: ;Ah, podia ter feito isso melhor;.
Hoje você já ganha dinheiro com cinema?
Ganho mixaria.
Você vive de quê?
Eu tenho uma loja de fotografia.
Você frequenta bem à noite de Brasília...
Sim, vou muito ao Beirute. Nesse tempo todo, não mudou muito, não. No Beirute, morrem uns e outros, mas têm substitutos à altura que chegam diariamente.
Você nunca pensou em dirigir?
Não consigo. Não vou conseguir porque não entendo de música, não entendo nada. Design, nada. Aliás, só escuto música se alguém falar ;tá tocando um negócio aí!” Aí eu digo: ;É mesmo;. Gosto da música se você me avisar que está tocando. Se não avisar, é como se fosse qualquer coisa. Tenho um problema qualquer, não sei o que é, porque não escuto. Engraçado isso, né?
E se você fosse secretário de Cultura, o que você faria?
Dedicação exclusiva ao teatro, ao cinema e à música. Eu não aceitaria ninguém de partido tal vindo com imposições. Política e cultura não podem se misturar. Educação e cultura podem.
Você tem saudades do Ceará?
Não. Eu vou muito, mas não tenho. Só tenho saudade de Brasília, quando saio.
Você está aqui há quantos anos?
Desde 1959. Trabalhei na construção do Palácio do Planalto. Eu era menor. O menor não podia trabalhar. Juscelino desceu do helicóptero e perguntou: ;Você trabalha aqui?;. Eu disse: ;Trabalho, mas dentro do almoxarifado. Não venho pra obra;. Cheguei aqui e só tinha a segunda série do ginasial.
Quem te trouxe?
Eu vim de avião com meu pai, minha mãe e meus irmãos. Saí de lá às 5h e cheguei aqui às 17h.
E aí aqui você já caiu na vida...
Comecei a vender revista no aeroporto. Naquele tempo, entrava no avião e vendia lá dentro. Depois saía. Você podia entrar e sair. Comia, pegava sanduíche...
Do que você tem saudade da Brasília daquela época?
Sobradinho era muito bom naquela época. Acendíamos fogueiras imensas na rua, ficávamos conversando ao redor à noite toda. E o pessoal do teatro viajava pra Formosa, Luziânia, Anápolis. Saía apresentando. Teve o desenho no festival, lembrei porque eu fiz I-Juca Pirama. Era noite, eu com a lança, enfiei na lua do cenário, e saí pelo teatro com a lança enfiada na lua. Quebraram as cadeiras de rir! E eu não sabia o que era. O povo caindo no chão.