Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Usha Velasco espalha pela cidade fotos tiradas pelos seus avô e bisavô

Quem circula pelos labirintos da Rodoviária do Plano Piloto deve ter visto uma imagem afixada nas paredes descuidadas e amareladas pelo tempo. Sobre os azulejos decadentes, repousa a fotografia antiga de uma menina sorridente em seu traje de primeira comunhão, de mãos postas, como se abençoasse os transeuntes. Na plataforma inferior, mesmo que danificados pela ação dos vândalos, um homem de suspensórios e uma moça de vestido rodado surgem em outra fotografia e parecem achar graça do vaivém das mais de 700 mil pessoas que circulam por lá diariamente. Nem o Conic escapou das aparições. Em uma de suas paredes laterais, está uma criança loira, também de mãos postas. Vestida de anjo, com auréola e asas feitas de pena.

Essas misteriosas entidades em preto e branco pularam diretamente do baú de memórias da jornalista e fotógrafa Usha Velasco para vários recantos de Brasília. São fotografias de família, registradas entre as décadas de 1920 e 1940 pelo bisavô e o seu avô da artista, selecionadas para a intervenção urbana O olhar no tempo: encontros e trânsitos. O bisavô, Afrânio Ribeiro, era músico e operário. Nos anos 1920, aprendeu o ofício e virou retratista. Acabou ensinando suas técnicas ao genro, Hélio Velasco, que registrou os parentes e as viagens que fez.

Fiel depositária do arquivo familiar, Usha decidiu dividir o próprio passado para propor uma viagem no tempo. ;Acredito piamente que o tempo não existe dessa forma isolada, de passado, de presente e de futuro. As coisas se comunicam. Essa noção é questionada desde o século 19 e a fotografia surgiu nesse período, como um portal aberto na nossa percepção do tempo. É como a arte: ela consegue nos fazer tocar algo que intelectualmente não conseguimos alcançar;, explica.

Com autorização da administração do local e patrocínio do Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2010, a artista expôs 10 imagens, que chegam a ter quase três metros de altura e foram impressas em papel A3, em diferentes pontos da cidade. Apenas duas estão inteiras. Quatro foram gradualmente arrancadas e Usha optou por retirar outras duas. Quem quiser ver painéis em bom estado, deve procurá-los nos corredores internos do Conic e nas paredes laterais da Rodoviária.

As relíquias enfeitam Brasília desde agosto, mas a intenção de Usha vai além do que ela definiu como ;misturar dois tempos e dois espaços na cabeça de quem passa na rua;. Depois de instalar as imagens, a artista convidou dois amigos, os fotógrafos José Rosa e Rinaldo Morelli para fazerem, juntos a documentação do experimento.

Usha recorreu a uma câmera digital. Rosa registrou as fotos em pinhole. Morelli documentou em polaroide e em uma câmera antiga 4x5 (utilizada no começo do século passado, obrigava o fotógrafo a cobrir a cabeça com um pano preto). ;Cada uma tem um resultado, oferece leituras diferentes. Algumas imagens também foram feitas com a câmera do meu avô, que registrou algumas das fotos originais expostas nas ruas. Ela oferece uma leitura diferente, com defeitos e sobreposições;, revela. A exposição ficará em cartaz na plataforma superior da Rodoviária, de 13 a 18 de dezembro.

Nessas andanças para registrar a convivência entre a cidade e as lembranças, Usha teve acesso ao calor da rua. Soube que muita gente anda fotografando as imagens para levar uma lembrança de Brasília. E se surpreendeu ao encontrar um olhar apurado onde não se imagina. ;Certa vez, levamos uma asa de anjo para fotografar com a imagem da criança-anjo e eu estava quebrando a cabeça para achar o melhor enquadramento. Um menino que engraxa sapatos por ali se aproximou e sugeriu que a gente colocasse as asas como um ;v; e a imagem do anjo no meio. Ele cantou a foto e ficou a melhor de todas;, impressiona-se. Em outra ocasião, um morador de rua parabenizou-a por fazer arte, já que, nas palavras dele, ;a arte tira as pessoas do primitivismo;.

Lixo chique
Usha Velasco formou-se em jornalismo e trabalha como editora de revista em um órgão público. Durante a universidade, fez quatro disciplinas com o professor de fotografia Luis Humberto e começou a se aventurar com a câmera na mão. Em viagem a Ouro Preto, fez fotos que caíram no gosto da mãe e acabou ganhando de presente uma máquina fotográfica de melhor qualidade.

Usha integrou o grupo Ladrões de Alma, tradicional coletivo de fotógrafos da cidade. Desde 1998, trabalhava com design de móveis e objetos e mantém um projeto e um blog, Ateliê do Lixo (ateliedolixo.blogspot.com), que ensina a aproveitar restos de sucata e entulho para criar itens de decoração com design. O trabalho fotográfico também é tema de vários blogs. Atualmente, ela alimenta o umaoutrabrasilia.blogspot.com , uma outrabrasilia2.blogspot.com e o ushavelasco.blogspot.com.