O sentimento a ser exposto na tela, na quinta noite competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é dos mais nobres e universais: a afeição e o bem-querer estão em primeiro plano, tendo como moldura sonora versões de Lenine para clássicos da devoção ao outro, como Carinhoso e Beatriz. Por traz de tanta delicadeza, porém, o filme Amor? ; misto de documentário e ficção ; traz, no título, o reforço da dúvida que atormenta até mesmo o diretor João Jardim. ;Por causa do poder de dominar completamente a outra pessoa envolvida na relação, o filme pergunta se isso é amor ou não. Não quero ser pretensioso, mas o longa é surpreendente num tema que está ali, todo o dia, no programa da Márcia Goldsmith;, brinca o cineasta de documentários como Janela da alma e Pro dia nascer feliz.
[FOTO2]Fora de si, alguns protagonistas das oito histórias de Amor? desencadeiam agressões relatadas na fita e que nutrem tramas de dependência afetiva, medo e desmoronamento de autoestima. A força do conteúdo do que é dito e da absoluta expressão de intimidade obrigou à forma: atrizes como Lília Cabral, Julia Lemmertz e Sílvia Lourenço, sem muita maquiagem, encenam a realidade de anônimas. ;Quando assiste, imediatamente, você entende e pensa ; ;ninguém poderia dizer isso em frente a uma câmera; nem a Paris Hilton diria;, avalia Jardim.
Longe da sensação de julgamento, já que os depoimentos se respaldaram no compromisso da equipe de manter a todos incógnitos, ;o relato chegava como um alívio;, observa o diretor. Num processo de similaridade ao de Jogo de cena (de Eduardo Coutinho), as diferenças se impõem. ;No de Coutinho existe a discussão do atuar e do não atuar. No nosso caso, não. Logo no início, uma nota esclarece: você verá um filme com atores;, explica.
Projeto arriscado, ;pela carga experimental;, Amor? se vale de abordagem ampla e subjetiva, com ;uma costura poética;, pelo que adianta o cineasta. ;As pessoas não são monstros, elas vivem situações que as levam a agir como tal. Não tratamos do ;coitada dela, que se apaixonou por um monstrinho;. A violência está em todo mundo e alguns não conseguem se controlar. O tema não se enquadra na maldade pura e simples e também não é um filme sobre tapas e beijos;, esclarece. Nomes fictícios preservam ainda mais a fortaleza ética que cerca Amor?, erguida pelo anonimato estendido aos cônjuges dos verdadeiros entrevistados. ;É a antítese do jornalismo, eu não sei o que vai acontecer;, diverte-se Jardim, que, por um ano, se associou à pesquisa da colega Reneé Castelo Branco.
Comprovando dados em torno do assunto, como o aumenta do número de pessoas que preenchem queixas em delegacias, o diretor definiu que ;o factual não interessava;. Daí, a valorização de casos concretos que envolvem lesões, ciúmes, tentativa de afogamento, sentimentos movidos à cocaína, inesperadas reaproximações e irreparáveis perdas familiares. Tudo extraído da vida de pessoas que alegavam ;gostar demais;, em casos vinculados, por vezes, a questões financeiras.
Quase 50 pessoas do Rio de Janeiro e de São Paulo foram ouvidas e as melhores entrevistas (apenas gravadas, mas nunca filmadas), que duraram entre uma hora e 90 minutos, levantaram o mote do ;jogo sem vítima; retratado. ;Há opressores, mas eles não são algozes. O prisma é outro do que apenas taxar o opressor de canalha. Outra coisa interessante foi que não conseguimos nenhum homem vítima de agressão feminina que topasse falar;, conta Jardim. Eduardo Moscovis, Cláudio Jaborandy e Ângelo Antônio assumem os papéis masculinos de Amor?.
Diferencial
Com idades entre 17 e 50 anos, os entrevistados mais destacados na pesquisa vieram ;da classe média e fugiam de estereótipos;. Outra opção foi não captar o drama em excesso. ;O filme preza pela inteligência do que é dito. Acho que as melhores histórias contadas foram as dos mais velhos, até pela vivência mais elaborada da vida. Há até humor, pela maneira como alguns falam. Não é a história da Lei Maria da Penha, que não comportaria humor. O filme não é sobre violência doméstica. Nele, prevalece o componente psicológico. O próprio aniquilamento da personalidade da outra pessoa é uma violência muito forte;, adianta o cineasta.
Aos 46 anos, o diretor que ainda colhe a repercussão do documentário mais recente Lixo extraordinário (do qual foi codiretor), se aventura em Amor? na primeira direção de atores. Quarenta ensaios individualizados, ao todo, sustentaram o processo que ainda agregou improvisos. ;Não me sinto bem de dizer que seja um documentário, mas com 100% das imagens encenadas. É um problema insolúvel;, conforma-se. Orçada em R$ 850 mil, a coprodução carioca entre a Copacabana Filmes e o canal a cabo GNT foi captada em 16mm, tendo Carla Camurati, a mulher do cineasta, como coordenadora de produção.
O novo campo da ficção pode até não suscitar referências ; ;Gosto de deixar o filme falar por ele mesmo, sem me ater a isso;, reforça Jardim ;, mas o diálogo afinado com o público é uma aposta pessoal do diretor que, no passado, veio apenas como jurado do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. ;O tempo todo o filme te provoca. Não é um Tropa de elite, mas ele tem uma comunicação muito boa, longe de ser hermético;, conclui.
43; FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO
Mostra competitiva 35mm, hoje, às 20h30 e 23h30, no Cine Brasília (EQS 106/107, 3244-1660). Exibição dos curtas-metragens A mula teimosa e o controle remoto, de Hélio Villela Nunes, e Café Aurora, de Pablo Polo, e do longa-metragem Amor?, de João Jardim. Filmes não recomendados para menores de 16 anos.
CAMINHOS ABERTOS
Dois estreantes no suporte 35mm entram na disputa pelo Candango da categoria curta-metragem, dentro da programação de hoje do festival de cinema: Hélio Villela Nunes, que responde por A mula teimosa e o controle remoto, e Pablo Polo, à frente de Café Aurora. O primeiro, ambientado numa fazenda, enfoca a relação, a princípio, de estranhamento entre o filho do patrão e um menino que trabalha no campo. Selecionado no edital do Curta Criança, o filme ultrapassa, na opinião do diretor, o limitado segmento infantojuvenil. ;Quero mais é que muita gente veja;, diz o diretor de 30 anos formado pela USP.
Ex-estudante de radialismo e televisão da Universidade Federal de Pernambuco, Pablo Polo, em Café Aurora propõe uma reflexão centrada no excesso de simultaneidade dos afazeres contemporâneos. ;Não há regionalismo, no filme que foi feito em Recife, mas poderia transcorrer em qualquer lugar;, comenta Pablo, aos 33 anos. Atento a detalhes e a mundos de refinado apuro sensorial, um barista se encanta pelo universo da escultura, enquanto a artista plástica ultrapassa o campo da mera apreciação do café feito por ele.