À primeira vista, os dramas humanos que invadirão a tela na quarta noite de mostra competitiva da 43; edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro podem soar surpreendentes a ponto de se confundirem com uma obra de ficção. Mas é tudo verdade, garante o diretor do longa O céu sobre os ombros, o mineiro Sérgio Borges. ;Fui atrás de histórias incríveis, que parecessem inventadas. Minha ideia era fazer um trabalho que falasse das relações entre a encenação e a realidade. Queria que não atores interpretassem seus próprios papéis;, esclarece o cineasta, que produziu curtas, realizou mostras de artes plásticas e ainda lançou dois livros antes de se dedicar ao primeiro longa de sua carreira. Ele integra a Teia, coletivo mineiro de audiovisual cada vez mais atuante no cinema brasileiro.
Encontrar narrativas tão atípicas não foi fácil. A pesquisa que conduziu a equipe aos três personagens durou seis meses e contou com a ajuda da atriz e produtora Isadora Fernandes. ;Ela atuou em Mutum (filme de Sandra Kogut) e usou sua sensibilidade cênica para selecionar pessoas que aprenderiam a lidar bem com a câmera;, afirma Borges. A princípio, 100 homens e mulheres com experiências de vida que beiram o surrealismo foram selecionados. A peneira seguinte reduziu o leque de opções para 30 possíveis candidatos. ;Acabamos escolhendo histórias comoventes, com uma forte carga de verdade e que concentram antagonismos, como se vários personagens coubessem dentro daquela pessoa;, explica o cineasta. Ao fim do processo, as câmeras fizeram um escrutínio na vida de três moradores de Belo Horizonte, pertencentes à classe média baixa, na faixa dos 30 anos, vivendo longe de suas famílias.
Everlyn Barbin foi uma das pessoas a revelar sua intimidade no cinema. Homossexual, formou-se em psicologia, fez mestrado em letras e estudou o personagem Herculine Barbin, hermafrodita francesa que publicou um diário analisado por Michel Foucault. A identificação com a obra foi tamanha que o acadêmico acabou se tornando transexual e adotando o sobrenome Barbin em sua assinatura. Durante algum tempo, Everlyn circulou entre a academia e a prostituição de rua. ;Existe uma busca pela conquista da identidade feminina e pelo sentido sagrado da prostituição;, avalia Borges.
A quantidade de nomes e apelidos desses ;atores-personagens;é diretamente proporcional às personas que os habitam. Outro mineiro retratado pelas lentes de Sérgio Borges é Murari Krishna ou Bogus, entre outras opções. A denominação depende do homem em cena: pode ser o hare krishna que enfrentou cinco anos de celibato. O líder da Galoucura, a fanática torcida do time de futebol Atlético Mineiro.
O cozinheiro de um restaurante vegetariano. O atendente de telemarketing. O lutador de boxe. ;Ele flutua entre a diluição do ego que a própria religião prega e o desejo de ser reconhecido de alguma forma, de encontrar alguém. É contido, mas transborda um desejo que é mais explícito nos outros personagens;, compara o diretor.
Trauma
A tríade se completa com Lwei Bakongo, um angolano que se mudou para o Brasil aos 11 anos de idade, mas nunca construiu uma identidade brasileira. Da infância, carrega o trauma do abandono do pai. Frustrado com a paternidade, casou-se e teve um filho com paralisia cerebral. Durante as filmagens, sua mulher abortou uma criança, no sétimo mês de gestação. Bakongo nunca trabalhou e é sustentado pela mãe e pela mulher, que se desdobra em quatro empregos para manter a casa. No roteiro do filme, o homem que começou a escrever sete livros, ao mesmo tempo sem terminar nenhum, precisa lidar com a perda do segundo filho e com o convite que recebeu de uma revista, para publicar um texto. ;A dualidade está em como ele se expressa para a vida. Ele tem um tipo de insegurança, parece estar de mau com o mundo, mas, ao mesmo tempo, tem posições firmes, é muito direto, sem pudores;, revela o cineasta.
Para unificar esses enredos múltiplos, o diretor escolheu uma linguagem ;econômica;, que dá a impressão de fazer um breve passeio por essas biografias, sem didatismo ou dramalhão. Transexualidade, prostituição, futebol, violência e solidão são abordados pelo tom da neutralidade. O processo exigiu um tempo de convivência, essencial para que os envolvidos se sentissem à vontade diante das lentes e permitissem uma aproximação profunda.
Para o diretor, os personagens são carismáticos o bastante para transformar a audiência em um grupo de espectadores ativos, que buscam reflexões sem respostas definitivas. ;Li uma entrevista do Abbas Kiarostami (cineasta iraniano) em que ele dizia que quando a gente lê um poema encontra coisas obscuras e mistérios. Ele diz nunca ter visto quem leia um poema e diga que não entendeu nada. Todo mundo entra no jogo daquele mistério e dá sentido ao poema. No cinema, se a narrativa não fica clara, as pessoas dizem que não entenderam. Mas o cinema precisa do espaço da incompletude. O filme não precisa dizer tudo;, acredita.
Dentro da mata
A primeira projeção da noite será a única produção paraense selecionada para a mostra. O curta Matinta, dirigido por Fernando Segtowic, é entranhado pelo espírito nortense do começo ao fim. Rodado em locações selvagens do estado, traz atores locais no elenco, entre eles a estrela global Dira Paes, que estreia no formato de filmes curtos. A montagem é inspirada na lenda de Matinta Pereira, cabocla que assombrava povoados perdidos na mata, mas com toques de romance, mistério e encanteria brasileira.
O segundo curta-metragem exibido será a produção Falta de ar, de Érico Monnerat, que também reverencia artistas locais, só que do Planalto Central. Egresso da Universidade de Brasília (UnB), o diretor convocou elenco de brasilienses habitués dos palcos e de estúdios de filmagem da cidade, como Willian Lopes, João Rafael e Alice Stefânia. A trama gira em torno de um idoso com problemas respiratórios, imerso em suas lembranças sufocantes dos tempos de ditadura.
MOSTRA COMPETITIVA
Hoje, às 20h30 e às 23h30, mostra em 35mm no Cine Brasília (106/7 Sul; 3244-7777), com a exibição dos curtas-metragens Matinta, de Fernando Segtowic, e Falta de ar, de Érico Monnerat, e do longa O céu sobre os ombros, de Sérgio Borges. Ingressos a R$ 6 e R$ 3 (meia). Não recomendando para menores de 16 anos.