Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Transeunte, longa de Eriyk Rocha, filho de Glauber, estreia no festival

O trânsito intenso de celebridades nos corredores do Festival de Cannes inspira livros, crônicas, coberturas jornalísticas, cenas de cinema. Em Eryk Rocha, no entanto, o ambiente de fantasias inspirou uma reação inusitada. ;Eu estava ali, naquele mundo de glamour, com todos aqueles astros. Pensei: vou fazer um filme sobre um homem totalmente comum, um anônimo. O argumento surgiu ali;, conta. O cineasta, que competia na Croisette, em 2004, com o curta-metragem Quimera, voltou ao Brasil com uma ideia na bagagem e um desafio na cabeça: enquadrar o personagem num longa-metragem de ficção.

Depois de colecionar prêmios com o documentário Rocha que voa (2002) e dirigir outros dois longas no formato (Intervalo clandestino e Pachamama), Eryk estreia na mostra competitiva do Festival de Brasília com Transeunte, o resultado de uma experiência transformadora. ;Descobri algo de novo no cinema e na vida;, resume. Por coincidência, apresenta o filme na mesma edição que exibe a cópia restaurada de O leão de sete cabeças (1970), assinado pelo pai, Glauber Rocha. ;É um momento muito especial. O leão é um filme impressionante. E o meu longa está numa seleção com longas de cineastas de uma mesma geração, que vem para oxigenar os pensamentos do cinema brasileiro;, observa.

O desejo de refletir sobre a linguagem cinematográfica é, para Eryk, um elo entre os diretores de longas que disputam Candangos este ano. A contribuição de Transeunte está no modo como embaralha elementos de documentário e ficção, já testada em Quimera, criado com o artista plástico Tunga. ;Para mim, cinema é cinema. Não existe essa separação. Acabou a era dos gêneros puros;, decreta o diretor. ;O que me interessa é o jogo, o contato entre os gêneros;, afirma. Uma inquietação natural, já que os documentários de Eryk também transgrediam fórmulas convencionais e experimentavam com elementos de artes plásticas e ensaio poético.

A seleção para a mostra competitiva também o emociona por um fator pessoal. Nascido em Brasília, onde viveu por poucos meses, o diretor mantém uma relação afetuosa com a cidade. No festival, exibiu Rocha que voa (em sessão hors-concours) e venceu o Candango de melhor montagem no curta De Glauber para Jirges (2006). Nas duas ocasiões, no entanto, não conseguiu comparecer ao Cine Brasília. ;Tenho vontade de descobrir a cidade, de circular mais por aí, de conhecer as periferias, as pessoas;, avisa. Os nervos de Transeunte, no entanto, apontam para a antiga capital: o Rio de Janeiro, onde o diretor de 32 anos foi criado.

É no vaivém do Centro carioca que a câmera cruza com personagens inspirados por uma pesquisa de campo que durou um ano e meio. ;O filme nasceu de um trabalho de observação de realidade. As conversas com as pessoas alimentaram os personagens. Ficamos imersos no Centro do Rio vendo, ouvindo, gravando;, conta. O laboratório ajudou na criação de Expedito, o personagem principal. Interpretado pelo ator Fernando Bezerra (com mais de 40 anos de experiência no teatro), o aposentado de 65 anos é um solitário que morou com a mãe, Metilene, até que ela morresse. Na memória, conserva um único amor: Ester, cujo fantasma ainda o persegue.

Geografia urbana
Ao redor desse homem, circulam personagens cotidianos, interpretados por um elenco que confunde atores profissionais com anônimos. ;São pequenas histórias da geografia urbana. Por isso, minha escolha foi por não usar atores conhecidos do grande público. Eu queria que os grandes atores se misturassem com transeuntes;, explica. O longo tempo garantido pela produtora do filme, a VideoFilmes (de Walter Salles e João Moreira Salles), permitiu que Eryk burilasse um bem que é essencial ao longa: o tempo. ;A cena dramática vai se dissolvendo na realidade. Mas o importante é ter espaço para lapidar as cenas, ir ao coração do filme;, descreve.

Filmado em película, em preto e branco, o longa exigiu rigor de uma equipe que conta com o fotógrafo Miguel Vassy, a corroteirista Manuela Dias e a montadora Ava Rocha (irmã de Eryk), Transeunte abre um desvio para o cinema do diretor. Nem ele sabe, porém, o destino desse itinerário. Trata cada filme como uma viagem imprevisível. ;Eu percebo uma mudança em mim e, é claro, no meu cinema. Isso tá em mutação. Fazer cinema, para mim, é aprender com o mundo, com as pessoas;, sintetiza o ;estreante;.

; Num tom coerente com o longa Transeunte, a seleção de curtas da noite de hoje também transita entre a ficção e o documentário. O primeiro, a produção carioca Angeli 24 horas (25min), desenha um retrato do cartunista, pai de personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe e Os Skrotinhos. Um dos temas do filme é a crise de Angeli por ser um artista dividido entre o pop (produzindo tirinhas diárias) e o desejo por uma obra radical. A diretora, Beth Formaggini (de Memória para uso diário, premiado pelo júri popular do Festival do Rio em 2007), produziu longas como Edifício Master, de Eduardo Coutinho, e Bendito fruto, de Sérgio Goldemberg. Já o segundo curta, Contagem (18min), é uma ficção que acompanha quatro personagens na cidade mineira. O curta é codirigido pelos cineastas Gabriel e Maurílio Martins, sócios da produtora mineira Filmes de Plástico.

43; FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO
Mostra competitiva de curtas e longas-metragens. Hoje, às 20h30 e 23h30, no Cine Brasília. Exibição do longa Transeunte, de Eryk Rocha, e dos curtas Angeli 24 horas, de Beth Formaggini, e Contagem, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (meia). Não recomendado para menores de 16 anos.