Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Veteranos modernosos no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Thiago Moyses, diretor do filme de ficção Kcrisis, consegue reunir famosos do teatro brasiliense num curta de animação

B. de Paiva, João Antônio, Andrade Júnior e Gê Martú formam parte de um conselho de anciãos num futuro próximo onde as grandes corporações dominaram os serviços básicos para a população e a polícia usa as universidades para agenciar assassinos. Só numa ficção científica ambientada em 2020 para reunir todos esses veteranos do teatro de Brasília numa mesma obra. Ainda que virtualmente, já que todos foram gravados em separado com um fundo azul e inseridos no curta de animação Kcrisis, dirigido por Thiago Moyses, que será exibido na Mostra Competitiva Digital do 43; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Fisicamente, a reunião dos membros do conselho só aconteceria em almoço marcado numa tarde de sexta-feira no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). É impossível montar o quebra-cabeça de todas as vezes que cada um dos atores se encontrou em trabalhos de cinema, teatro e televisão ao longo de 50 a 60 anos de carreira, em média. Mas é certo que nunca havia se reunido esse ;elenco de astros do teatro brasiliense ao mesmo tempo;, como define com orgulho a maquiadora, produtora executiva e responsável pela reunião para o curta-metragem, Cristina Moyses. Da ficção também participam atores mais jovens, como Bruno Garcia, André Deca, Luciana Martuchelli e Jones Schnneider.

A primeira geração de profissionais de teatro da cidade cinquentenária consome xícaras e mais xícaras de café espresso enquanto se elogia, se implica, se vangloria e, principalmente, ri junta. ;Quando a gente começou, não havia atores veteranos e nem crítico de teatro em Brasília. Isso dava muita liberdade, porque a gente podia experimentar e errar. Quando a gente levava os espetáculos para fora daqui, todo mundo ficava impressionado;, relembra João Antônio sobre o boom cênico da cidade entre as décadas de 1970 e 1980.

;Isso nunca teria acontecido se aqui não fosse uma cidade nova. Fazia-se muito teatro amador e hoje isso não existe mais. A morte do teatro amador foi ruim para Brasília e para o Brasil. A profissionalização é muito rápida e ninguém está mais começando. Jovens atores me procuram para dizer que têm ;um certo estilo; ou usam expressões como ;meu teatro é assim;. Nem eu sei qual é o meu estilo ou como é o meu teatro;, critica João Antônio, hoje professor aposentado de artes cênicas. ;No Rio de Janeiro, a gente ensaiava um dia para apresentar-se durante um ano. Em Brasília, ensaia-se um ano para se apresentar um dia;, relembra Martú, apesar de o pessimismo não contaminar por inteiro o teor da conversa sobre a situação atual do teatro.

Pilhérias
;Eu discordo um pouco dessas afirmações de que Brasília não tinha um teatro profissional. Essa era uma impressão de quem mirava muito o mercado do Rio e São Paulo. Daquela época de ouro do teatro de Brasília (nos anos 1970) até hoje, os espetáculos brasilienses são premiadíssimos fora daqui;, discorre Hugo Rodas, outro veterano dos palcos candangos que faz o personagem Booz na trama sci-fi. Há 20 ou 30 anos, seria inimaginável compor um elenco de atores maduros da cidade como na cena escrita especialmente por Moyses para estes intérpretes. ;Eu tive de fazer muitos papéis de homens velhos quando era mais novo;, explica Martú, que ficou calvo aos 23 anos e mesmo assim pleiteou uma vaga no elenco do musical Hair quando ainda morava no Rio. Essa é apenas mais uma das histórias do passado interrompida com uma pilhéria. ;Você era velho, mas ainda não era idoso;, provoca B. de Paiva, com indefectível humor cearense. ;Eu achei foi bom não ter de fazer a cena com esses caras;, brinca Andrade, sobre as gravações para o filme feitas em dias diferentes.

;Não costumo ser saudosista. Mas em momentos como esses é bom rever tudo que já passou;, suspira Martú. Uma pilha de memórias que encheriam as páginas de muitos livros é erguida como se fosse uma torre deliciosamente desorganizada. É impossível garantir a objetividade necessária à entrevista jornalística. ;Vai dar para escrever uma reportagem com essa conversa caótica?;, pergunta um dos entrevistados.

KCRISIS
Dirigido por Tiago Moyses. Será exibido no dia 28, às 14h30, dentro da Mostra Competitiva Digital do 43; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro na Sala Martins Pena do Teatro Nacional Cláudio Santoro (Setor Cultural Norte, Via N2; 3325-6256). Entrada franca. Não recomendado para menores de 16 anos.

AS TÉCNICAS DE KCRISIS
Para criar a animação feita com a técnica de rotoscopia, o cineasta Thiago Moyses transformou o próprio quarto num apartamento da 108 Norte em estúdio de gravação. Uma parede teve de ser pintada de azul para permitir o recorte da figura dos atores na pós-produção. O espaço também funciona como ilha de edição, o que obriga Thiago a dormir espremido com tantos equipamentos.

;É uma mistura de técnicas, estamos usando a rotoscopia com animação tradicional;, descreve o diretor, que executou boa parte da animação e da montagem. Assim como todos os outros membros da pequena equipe ; centrada nas figuras dele e nas de Cristina Moyses e Fabiana Soares ;, Thiago teve de acumular participação ainda em outras funções como diretor de arte, cenografista e desenhista de som. A produção, digamos, caseira do Thiago é na verdade um projeto bem mais ambicioso. ;A ideia é que o filme vire um piloto para uma possível série de televisão. Estamos negociando com alguns canais, mas ainda não há nada certo;, explica o diretor. É certo que uma dublagem em inglês será feita em Los Angeles após o festival.

Thiago se destacou no cenário cinematográfico brasiliense quando ainda cursava cinema na Universidade de Brasília (UnB) e dirigiu o curta em 16mm Fobia (2003). Outros quatro curtas se seguiram até o primeiro longa-metragem Síndrome de Pinochio (2009), que chegou a ser um dos finalistas da pré-seleção feita ainda no Ministério da Cultura (MinC) na escolha do título indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O escolhido acabou sendo Salve geral, de Sérgio Rezende.

Estabilidade
A rotoscopia é uma técnica que foi desenvolvida ainda no começo do século 20. Usa-se uma referência captada anteriormente e depois uma animação é feita sobre a imagem real. Filmes inteiros como Waking life, estrelada por e dirigida por Richard Linklater e o lendário clipe de Take on me, da banda de rock A-ha foram feitas seguindo essa técnica. Um dos desafios do animador é diminuir o tremor da imagem na passagem de um plano para outro. É o que Thiago está experimentando com seu novo trabalho.