Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Editoras comemoram centenário de Rachel de Queiroz com livros

Quando deitou de bruços no chão da sala de casa para escrever O quinze, sob a luz de um lampião, Rachel de Queiroz já conhecia o melhor da literatura mundial. Filha de intelectuais e gente que lia muito, riscou as páginas do caderno com algumas certezas. Uma delas era a de não escrever bobagens, ;sentimentalismos;. A censura da família seria implacável. Afinal, foi a mãe quem tirou das mãos da menina um romance francês água com açúcar e tratou de substituí-lo por A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Rachel estava com 12 anos quando a mãe tomou a providência. Aos 19, escreveu O quinze e surpreendeu o país com um texto maduro, perfeitamente condizente com os ideais modernistas da literatura brasileira dos anos 1920, seco e conciso.

Nascida há exatos 100 anos, em 17 de novembro de 1910, Rachel não tinha ideia da importância do romance escrito para passar o tempo durante um repouso por conta de uma congestão pulmonar. O Quinze se tornaria o primeiro texto modernista brasileiro assinado por uma mulher. Seria celebrado por Mario de Andrade, Manuel Bandeira e toda a trupe moderna. E daria início ao fenômeno editorial que, ainda hoje, perdura por aí. Para aproveitar a efeméride do centenário, as editoras José Olympio e Demócrito Rocha, o Instituto Moreira Salles (IMS) e a Academia Brasileira de Letras (ABL) publicam biografias, ensaios e textos inéditos da menina de Quixadá (CE), além de reedições e exposições.

O IMS lança hoje Mandacaru, livro com 10 poemas escritos por uma Rachel muito menina, antes mesmo de se aventurar no romance. Os primeiros passos na busca de uma linguagem literária aconteceram com os versos dedicados à história do Nordeste. Aos 17 anos, já empregada como jornalista, falava da dureza do sertão, da distância do irmão rico do sul, de personagens históricos, como a revolucionária Bárbara de Alencar e o Padre Cícero, das migrações para o Norte em busca da riqueza da borracha, da seca. Temáticas que mais tarde apareceriam distribuídas pelos sete romances e centenas de crônicas publicados por Rachel. ;Ninguém vai dizer agora que Rachel de Queiroz é uma grande poeta e não é isso que queremos com esses poemas. Ela é uma extraordinária prosadora, mas passou pela poesia quando estava tateando sua expressão;, avalia Elvia Bezerra, organizadora e autora do prefácio de Mandacaru.

A escritora confiou os originais à amiga Alba Frota, proprietária também de acervo de imagens e documentos de Rachel, mas nunca conseguiu publicar o livro. A edição em facsímile do IMS traz a escrita em letra cursiva elegante da menina, além de fotografias. ;Nos poemas detectamos uma linguagem mais simples do que aquela pretendida pelo modernismo aos quais ela pretendia se juntar. No prefácio ela se dirige aos modernistas de São Paulo e se oferece para participar do movimento;, conta Elvia. Os poemas datam de 1928 e o modernismo já conhecia uma segunda fase. No entanto, os 3 mil quilômetros que separam o Ceará e São Paulo atrasaram os reflexos do movimento capitaneado pelos paulistas. O IMS também inaugura hoje no Rio de Janeiro uma exposição com fotografias, documentos e primeiras edições que integram o acervo da instituição.

Crônicas

No jornal O povo, de Fortaleza, o centenário de Rachel começou no início do ano. Graças a um acervo precioso, o diário tem publicado crônicas históricas da escritora. A Fundação Demócrito Rocha, pertencente ao jornal, também investiu na publicação de quatro livros. ;O jornal tem um acervo de mais de 1.200 crônicas, textos de Rachel de Queiroz de 1928 a 2003. A vida inteira ela escreveu para jornal. Fui pesquisar e descobri que muita coisa não tinha sido publicada;, conta Regina Ribeiro, editora da Demócrito Rocha.

Parte do material foi confiado à romancista Ana Miranda,
que selecionou os textos de A lua de Londres, mas Regina ficou intrigada com a quantidade de crônicas sobre a terra e o homem nordestino e decidiu lançar também Do Nordeste ao infinito. Para completar a trilogia, sai ainda Uma escrita no tempo, coletânea de ensaios assinados por pesquisadores como Heloísa Buarque de Hollanda, Nélida Piñon e Luís Bueno. ;A obra dela ainda é muito pouco estudada no Brasil;, lamenta Regina.

Rachel sofreu, de fato, um descaso por parte da crítica acadêmica, que passou a ignorá-la a partir dos anos 1960 por causa de posicionamentos políticos encarados pela esquerda como contraditórios. Desde menina a escritora alimentava simpatia pelo Partido Comunista. Chegou a realizar reuniões na casa dos pais, ainda adolescente, com militantes e intelectuais de esquerda. Mais tarde, quando decidiu integrar os quadros do partido, se decepcionou. Os dirigentes exigiam da escritora a mudança nos rumos de um personagem do romance João Miguel. A mocinha estuprada não podia ser campesina, era melhor que fosse burguesa. A escritora não cedeu e abandonou o partido.

Oposição ao getulismo

Em 1964, Rachel de Queiroz decidiu apoiar o general Castelo Branco no golpe militar como uma maneira de se opor a Jango, para ela ;um representante do que restara do getulismo;, que tanto desprezava. ;Meu papel em tudo isso foi pequeno, claro; de qualquer maneira, gosto de frisar que, depois da saída do Castelo, eu deixei de apoiar o governo militar.; O ato, no entanto, provocou o desprezo da crítica acadêmica da época.

É um pouco esse ponto que o jornalista Edmilson Caminha aborda em A senhora do Não me deixes, publicação da ABL prevista para dezembro. Cearense residente em Brasília, Caminha procurou abordar vida e obra da escritora com linguagem destinada a estudantes e professores. ;Destaco no livro que, a par essa relação com os ocupantes do poder em 1964, ela não tinha nenhuma ambição de poder. Foi convidada para ser ministra da Cultura duas vezes e recusou. Indicou Gilberto Freyre, que estava insatisfeito porque achou que ia ser nomeado governador de Pernambuco pelos militares e não foi.;

Na editora José Olympio, detentora dos direitos de publicação dos livros de Rachel, as comemorações começaram em agosto com a publicação de Não me deixes. O nome da fazenda da autora dá título ao livro de receitas de família. Agora é a vez de Tantos anos, as memórias escritas em parceria com a irmã Maria Luiza e publicadas originalmente em 1998. Em 2011, a editora lança ainda ABC de Rachel de Queiroz, de Lilian Fortes, três livros de crônicas e dois infantis. Rachel de Queiroz faleceu dormindo em sua rede, no bairro do Leblon, na Zona Sul do Rio, em 4 de novembro de 2003. Ela foi vítima de um infarto do miocárdio, por volta das 6h. A escritora já havia sofrido um derrame em agosto de 1999.

Trechos de poemas de Mandacaru
Nheengarêçaua
Homem do Sul, você que conhece a geada e o frio,
você que já viu primavera,
inverno, outono como na Europa,
você não sabe o que é o sol!
Você não imagina
o que é o céu sem nuvens por meses seguidos;
o que é o sol bater de chapa na terra fulva
trezentos dias encarrilhados!…
Ao meio-dia
nos tempos de fogo em que o sol é rei,
o ar é tão fino e tão frágil,
que treme;
o sol fura-o de luz, igualzinho à rendeira
pinicando de espinhos a trama dos bilros;
Você nunca veio até cá;
;; Ceará!
;
Retirante, sol quente, miséria;;
O sol do Nordeste foi feito somente
pra os olhos com medo dos filhos da terra;
o filho da terra, pequeno e feioso,
que é como o mandacaru:
quando a tragédia seca escorraça a vida e absorve as seivas,
só ele, isolado
no meio da caatinga que se apinha
e estende para o céu a lamúria em cinza dos galhos secos,
luta, verdeja, encontra seiva e vive
macambúzio e erriçado;

E, entanto, essa gente que mora tão longe
é a mesma que mora nas terras do Norte;
Se o sangue do Sul caldeou-se com o branco imigrante
numa fecunda mistura,
ainda existe em suas veias mestiças
esta seiva que o Norte tem pura;

E, se somos irmãos,
por que um laço mais forte de amor não nos prende?
Irmão longínquo, senhor das fábricas,
dos cafeeiros, das minas, do ouro,
eu quero que o meu poema
faça as vezes de um vidro esfumado
através do qual seu olhar deslumbrado
possa ver esta terra candente do Norte;
Irmão longínquo, detentor da riqueza da Pátria,
eu quero que as folhas abertas de meu poema
sejam mãos estendidas
para um abraço de fraternidade!

Poemas do livro Mandacaru, de Rachel de Queiroz

D. Bárbara de AlencarJá faz tempo que esta história aconteceu;

talvez mais de cem anos;

E assim velha

é a história mais bonita que eu conheço;



Nesse tempo, o Brasil era ingênuo e criança

e entregou o governo a um Bragança

debochado e maluco;

Só porque ele era filho de rei

e fazia promessas bonitas

e dizia galantezas às damas, ao povo,

com frasalhões de fim de ato;

Foi então que um punhado de heróis ; ou um punhado de loucos ;

tiveram pena da terra verde tão mal entregue

e sonharam mágicos sonhos de liberdade;

Tinham o sol ante os olhos;

"Triunfar ou morrer" era o lema;







E uma mulher, de alma de aço afiada em dois gumes

; a bravura de fera a lutar pelas crias

e o arrojo viril dum apóstolo ;,

empunhou a bandeira vermelha,

acendeu os morteiros de guerra

e se fez a rainha ideal da revolta;

E tomou pela mão os heróis rebelados,

dois dos quais lhe sugaram dos peitos no leite materno5

a coragem da raça guerreira da terra,

e amostrou-lhes à frente a vereda da glória:

"; Vejam, filhos! É ali! É preciso chegar!

Surge, às vezes, a morte em caminho;

Mas que vale morrer? Tudo morre no mundo!

Tudo morre!

Mas não! Vocês hão de vencer!

A vitória, enfeitada de penas vermelhas

a arazoia de festa à cintura,

olhem! Surge com o sol, na manhã do triunfo"

;

Ah! Mas cheguei no pedaço mais triste da história...

A mulher grandiosa, os guerreiros valentes,

que traziam um sol rubro ante os olhos

e tentaram tomá-lo nos dedos,

tinham o coração maior que as mãos;

Se o sonho era grande e abarcava o futuro,

se o coração era imenso e abrangia o infinito,

eram curtos e poucos os braços!

E dispunham pra luta,

pra conquista tão grande e longínqua





do pequeno tamanho das espadas;

E em vez da vitória,

que acenava de longe enfeitada de penas vistosas,

só chegou, dolorosa, a derrota irrisória;



E o destino perverso

tangeu-os para o pretume das enxovias;

e com seu dedo de saci diabólico

amostrou-lhes o "f" agourento das forcas,

fê-los ouvir a ribombada dos fuzilamentos;

D. Bárbara!

Você é a Nossa Senhora da minha raça!

Parece que ouço de sua boca

santas palavras de ternura e de energia:

"; Vá, meu filho! Vá lutar por sua terra!

Se puder, vença! Se não puder, morra!

Quer? Eu vou com você pra lhe dar mais coragem!

Olhe Tristão esquartejado em Santa Rosa!

Ah! Pobrezinho do meu filho!

Ainda estou vendo a cabecinha cacheada,

quando em pequeno ele dormia no meu colo;

; Estou chorando?

É de tristeza por o ver vencido,

é só de pena pela minha terra!

Ah! Se ele fosse vivo;

talvez a gente não perdesse a guerra!

Então, se ainda quisessem, ele morria;

e eu morria com ele!

Ande, meu filho, volte!

Eu quero lhe criar de novo!

Venha outra vez aprender a ser valente"







O êxodo

Setenta e Sete; Oitenta e Oito; o Quinze;

foram as secas da morte;

O sol, qual Moloch3 das lendas pedantes,

descerrou as goelas de fogo

e ameaçou engolir toda a gente.

E queimou, com seus olhos de brasas ardentes,

as sementes que o vento lançara na terra;

e matou, com seu bafo de chamas,

as raízes que a mata embutira no chão;

e bebeu, de sedento e perverso,

toda a água que o inverno esqueceu por aqui.

E depois, tendo esgotado tudo,

devorado tudo,

espanou com a vassoura da fome a coorte de vidas que

a seca deixou;

Ai! A amargura do êxodo!

E o Amazonas, destino de todos!

O Amazonas, de alma de boto que encanta e que

mata;

"Adeus Maranguape, adeus Quixadá4

Adeus povo todo, adeus Ceará!





Não chore, Mãezinha, não morra a chorar!

Que no fim do ano eu torno a voltar;

Eu vou para o Norte, vou ser seringueiro,

Vou para o Amazonas, vou ganhar dinheiro.

Não chore, minha noiva, ai, não chore assim!

No fim deste ano, espere por mim"

; é a cantiga do êxodo;

Na proa desolada do navio,

a viola soluça,

e o retirante se despede e diz que volta;

;

Sezão; jacaré; nostalgia; beribéri;

e seringueira; seringueira; seringueira;

seringueira;

;

Oitenta e Nove! Dezesseis!

Choveu de novo!

"; Oh! Cearense sem-vergonha!

Vem de lá corrido, mas choveu, arriba!

"

"; Ai, meu irmão! Do meu Ceará velho,

a gente não se esquece nem na cova!





Adeus, que estou com pressa!

Avie com as contas! Se desforre na borracha!

Avie, que eu quero ir ver a babugem6 brotar"

;

A procissão dos paroaras7 ricos

faz esquecer as procissões de retirantes;

Baús de couro, repregados de dourado,

onde os contos de réis dormem em latas de flandres;

Correntões que retinem em coletes de alpaca

ou se enrolam em pescoços caboclos, roliços;

Solitários fulgentes,

que cintilam em dedões calejados;

Grandes bichas,8 iguais a caroços de milho

pendurados de orelhas furadas por brincos;

É a riqueza que chega;

são os frutos do êxodo;

O paroara rico

é o feliz desenlace da epopeia;

E os baús cheios,

os correntões,

as bichas de brilhantes;

e os donos de tudo

vão instalar seu ouro e sua pompa

no Quixadá, no Quixeramobim, no Crato,9

bem dentro da Rua Grande,

na melhor casa da Praça da Matriz;

;





Gente do Sul, vocês, por acaso,

sabem ganhar dinheiro penosamente,

penosamente; penosamente;

; ai! O frio da sezão! Ai! A saudade do seu canto!

Como custa a pingar o leite na tigela!

Gota a gota;

penosamente; ;

pra depois esbanjarem em sua terra?;