O poeta Augusto de Campos, um dos criadores do movimento da poesia concreta, se considera quase que um brasiliense. Ele e a mulher, Ligia, visitam a cidade com certa frequência, desde a década de 1980, quando um dos seus filhos, Roland Campos, passou a lecionar na Universidade de Brasília. Augusto esteve de passagem por Brasília, na semana passada, para participar do seminário Arte e ciência, promovido pelo Departamento de Literatura da UnB. No evento, apresentou uma performance de poesia, acompanhado pelo filho Cid Campos. Nesta entrevista, ele fala sobre Brasília, Oswald de Andrade, poesia, vida, morte e futebol.
;Quero ser surpreendido;
Como despertou para o mundo da poesia?
Eu e meu irmão Haroldo estudamos no Colégio São Bento, em São Paulo, que oferecia um ensino privilegiado e havia sido frequentado pelo Oswald de Andrade. No primeiro ano em que o espanhol foi introduzido institucionalmente, li o Dom Quixote, de Cervantes. Nós estudávamos oito anos de latim. Aprendíamos inglês, francês e espanhol. Havia a possibilidade de aprender grego. Tínhamos colegas brilhantes como é o caso do Boris Fausto, que era poeta e se tornou historiador, um dos sujeitos mais inteligentes que conheci. Quando comecei a fazer os meus primeiros poemas tinha 15 anos, eram uns sonetos. Em casa, o meu pai, sem ser um especialista, era muito dotado para a arte. Por meio dele, ouvi Camões, de quem ele fazia uma paródia em trecho que mencionava um certo Eurico: ;Quem sabe eu rico em outros climas;. Alcançamos o nível de classe média alta, mas veio o crack da bolsa e nós decaímos na escala social e tivemos de morar em uma pensão durante algum tempo até meu pai recuperar a antiga condição.
E a ascendência baiana, de onde vem?
Minha família era paulista de uma família quatrocentona. Depois que lemos James Joyce e Yeats, ficamos satisfeitos de saber que o meu bisavô era irlandês e minha bisavó baiana. Quem sabe a minha afeição pelos baianos vem daí.
Mas quando escreveu os primeiros poemas?
Comecei a desenhar e o Haroldo a escrever uns contos, que vendíamos a nossas tias. O meu pai achou muita graça e mandou fazer um carimbo oval com os dizeres: Escritório Irmãos Campos.
É daí que o Oswald de Andrade tirou a história de que vocês constituíam uma firma de poesia?
Não, isso ocorreu muito depois. Nós conhecemos Oswald em 1946, quando eu tinha 18 anos. Nenhum de nós tinha livro publicado, mas como éramos amigos do crítico Mário da Silva Brito, ele nos apresentou Oswald. A uma certa altura ele se entusiasmou com a conversa, foi até o armário e retirou o livro Poemas reunidos e ofereceu um exemplar para cada um de nós (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari). Neste mesmo ano, ele pegou uma edição do romance Serafim Ponte Grande e autografou: ;Aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, firma de poesia;. Depois disso, tivemos muito outros encontros com ele.
Qual o impacto da presença do Oswald na formação de vocês?
Ele exerceu uma influência enorme. A Maria Antonieta D;Alkimin contou que, à noite, ele ia para a geladeira e comia doce escondido. Tinha diabetes, foi escalpelado, usava boina para dissimular. Levei alguns poemas do livro Poetamenos e o Décio levou uns contos. Parece que o Oswald gostou, pois três dias depois, ele escreveu uma crônica, desancando a geração de 1945 e comentando que, apesar disso, havia gente jovem pesquisando. Nos citou (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari) e um certo Goulart, que era o Ferreira Gullar. Ele leu A luta corporal, que chegou até ele pelo Oliveira Bastos, e gostou muito. Acho que ele teria gostado muito do poema Beba Coca-Cola, que Décio escreveria algum tempo depois. Oswald era muito bom para atacar, mas não tinha mágoa dos adversários de polêmica. No outro dia, ele abraçava todo mundo. Era gordinho, alegre e ridente.
E como era a relação de vocês com o Oliveira Bastos (que também foi editor-chefe do Correio, na década de 1980)?
Ele era um pouco parecido com o Oswald. Certa vez nós brigamos e ficamos sem nos falar. O José Lino Grunewald e o Mario Faustino me convidaram para uma conversa com o Oliveira. Eu estava sentando, pensando no que ia falar: vou arrasar o Bastos. Ele era redondo, mulato e falante, já entrou no apartamento de braços abertos: ;Augusto, entrega isso a Deus;. Partimos para o abraço, saímos juntos, fomos à biblioteca e ele me mostrou um poema de Sousândrade: ;Risadas de raposas bêbadas;. Na época, não havia xerox, copiei uma parte do poema à mão e depois consegui um microfilme. Comentei que ele deveria escrever um aritgo sobre o Sousândrade, mas ele passou a bola para nós: ;Não, isso é para vocês;. Mostrei para o Haroldo, ele ficou entusiasmado e começou a escrever uma série de artigos que recolocaram Sousândrade em circulação.
O que mudou na poesia brasileira desde o lançamento da revista Noigrandes, em 1952, com o seu irmão Haroldo e Décio Pignatari, lançando a Poesia Concreta?
Esta resposta vocês poderiam dar melhor do que eu. Mas, no mínimo, nós mostramos que se podia fazer poesia fora do verso. Por isso, o Décio (Pignatari) escreveu, naquela época, que estava encerrado o ciclo histórico do verso. Era possível fazer poesia sem verso, uma poesia com outras grafias e até sem palavra. Como a poesia concreta foi muito debatida, causou muitos questionamentos, os outros poetas se sentiram liberados para fazer outro tipo de poesia. A poesia concreta foi um osso duro de roer. Até hoje tem gente que gosta muito e gente que odeia. Este processo de criação continua vivo.
Você ainda se considera um poeta concreto?
Não sei o que sou. Gosto da linguagem visual. Quando surgiu o computador eu adorei porque tenho uma afinidade muito grande com a linguagem visual e com a música. Depois, iniciei este trabalho de interpretação da poesia com o Cid (seu filho). A poesia concreta, desde o início, sempre se apresentou como uma linguagem verbivocovisual, quer dizer, envolve a palavra, a imagem e o som. Antes disso, Julio Medaglia e Rogério Duprat já estavam musicando os nossos poemas.
Talvez por ter essa inquietação você se identificou com a Tropicália?
Fui um dos primeiros a compreendê-los. Desde que vi Caetano cantando Alegria, alegria, em um Festival, eu pensei: esse cara é especial. Claro que havia muitos outros compositores de valor. Mas a melodia dele não é convencional, havia algo de moderno ali. Comecei a escrever sobre os baianos porque, na verdade, a gente já conhecia a música de João Gilberto. Nossa geração tinha um contato muito prematuro com João. As pessoas diziam que João Gilberto não era cantor porque ele rompia com a entonação operística na música popular. Eu gostava muito de um disco chamado Noel por Noel. Ele cantava no estilo despojado de Mário Reis. E gostava também do Lupicínio Rodrigues. Houve influência recíproca entre nosso grupo e o da Tropicália.
Vocês intitularam um dos manifestos de Plano piloto da poesia concreta. Qual o impacto de Brasília no grupo que criou a poesia concreta?
O nome Plano Piloto espelha exatamente o nosso entusiasmo com a cidade nova e o planejamento de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Quando Max Bense veio ao Brasil adorou Brasília. Mas Brasília sempre dividiu os brasileiros. Os cariocas eram contra porque perdiam as bocas, tinham de fazer uma vida nova, deixar Copacabana, Leblon ou Ipanema. Nós tínhamos contato com os pintores concretos de São Paulo desde 1952 e eles tratavam muito dos temas da arte abstrata, do construtivismo e da arquitetura. Conhecemos as primeiras maquetes de Brasília em 1956 por meio das revistas. O nosso manifesto é de 1958.
Mas qual a sua visão pessoal sobre Brasília?
Me considero suspeito, pois, na verdade, eu sou quase brasiliense. Eu e Ligia passamos a frequentar Brasília e a ser brasilienses desde 1980, quando o meu filho Roland se mudou para a cidade para exercer a função de professor de física da UnB. Gostamos cada vez mais daqui. E nunca me senti isolado em Brasília, pois logo fiz amizade com o Gontijo, o Kac, o Turiba e o pessoal da revista Bric a Brac. Há muitas afinidades e muitas conversas interessantes. E, depois, a minha neta de 22 anos é brasiliense.
Você escreveu um poema sobre a perplexidade de estar em uma situação de pós-modernismo. Nós estamos superando essa situação ou ainda permanecemos imersos nela?
Não sei se sou a melhor pessoa para falar sobre os novos. O Ezra Pound dizia que os velhos não devem opinar sobre os novos, pois só gostam dos que se parecem com eles. Acho que a palavra pós-moderno em arquitetura tem um sentido, mas em literatura, ela nunca me convenceu. Ninguém conseguiu me explicar direito o que é o pós-moderno. Me parece um período dominado por um ecletismo barato, um verdadeiro vale-tudo. Claro que algumas pessoas conseguem fazer coisas interessantes nesse cenário. Mas em muitos casos, o que vejo é um retromoderno, escondendo um desejo de retornar a um estado de coisas de antes das conquistas modernistas. Por isso, eu exagerei no poema Pós-Tudo, pois eu queria fazer uma crítica feroz ao pós-moderno. Acho que continuamos modernos e talvez ultramodernos.
Palavra tem alma?
A dos grandes poetas tem seguramente. Mas sem forma não há nada.
Você mesmo chamou a atenção para o alto nível poético que a canção popular atingiu em alguns momentos no Brasil? Por que o padrão caiu tanto?
Desde os cantadores nordestinos, a poesia da canção brasileira é fantástica. Mas acho que a poesia cantada brasileira continua muito rica. Talvez o momento mais revolucionário tenha refluído. Vejo mais esta fase como de aperfeiçoamento. Gosto muito de hip-hop, não o rap façanhudo, em que as garotas bonitas aparecem na condição de cenário. O rap de que gosto é do Lauryn Hill ou da Erikah Badu, que fazem uma música mais abstrata e experimental. Quero pelo menos ser surpreendido.
Como é a sua relação com o futebol?
Torço para o Corinthians, mas, no momento, o que mais desperta o meu entusiasmo é o time de meninos do Santos. O Neymar e o Ganso são uma esperança da volta da imaginação e da invenção no futebol brasileiro.
Em que medida o avanço da idade e a proximidade com a morte afetam a sua visão de mundo e de poeta?
Tenho vários poemas, principalmente os últimos, que lidam com esse tema, mas não é uma obsessão. Tenho medo da dor, mas não da morte. Gostaria de morrer como o meu pai, que teve um ataque cardíaco fulminante aos 83 anos de idade. Tenho até curiosidade, quem sabe é algo mais interessante. A morte está relacionada com o amor, porque você fica na dúvida se vai reencontrar as pessoas de quem gosta.