Cinquenta anos em pouco mais de 600 páginas, escritas em seis meses. Sebastião Nery revisitou a história política brasileira da segunda metade do último século com a precisão e a credencial de quem participou ativamente da vida pública do país como jornalista, advogado e político. No livro A nuvem: o que ficou do que passou, uma narrativa memorial que mistura experiências pessoais e acontecimentos sociais, Nery conta a sua trajetória de vida de 1944, quando saiu da terra natal, Jaguaquara (BA), a 1994, ano de retorno ao Brasil vindo de Paris.
E ele brinca: "Sou um Lula que não deu certo pra chegar à Presidência. Também nasci na roça. O Lula era evidentemente mais pobre do que eu. Meu pai tinha um pedacinho de terra. Trabalhava na região e nos alimentou a todos". O escritor, que acumula outras 15 obras, vem hoje a Brasília para lançar a nova e terceira edição do livro, após divulgar o trabalho em outros 10 estados.
Em 8 de março de 1932, uma terça-feira de muito calor na pequena propriedade dos pais, a Fazenda Palmeira, Nery nasceu, magrinho e doente. Cresceu sem o conforto da luz elétrica e a acessibilidade das estradas, acompanhado apenas da mãe, do pai e de 10 irmãos. Antes de completar 5 anos, já recuperado graças aos cuidados do doutor Guilhermino, o menino teve a experiência que percorreria sua história de vida pelas próximas décadas. Deitado sob uma jaqueira, ele viu nuvens que se misturavam e se transformavam em enormes animais, elefantes, bois, e, por fim, num cavalo alado.
Durante horas, ele se sentia levado pelo cavalo a lugares que nunca imaginava conhecer. No início dos anos 1990, no cargo de adido cultural na Europa, Nery percebeu até onde a nuvem o havia transportado: "Para a cidade onde mais sonhei, onde mais aprendi, onde mais cresci, onde mais vivi, onde mais me comovi, onde mais amei, onde mais fui amado, Paris", escreve.
Aos 11 anos, Nery viajou pela primeira vez a bordo da nuvem e decidiu ir para um seminário. Foi o primeiro passo rumo a uma vida agitada: estudou filosofia no seminário, nos anos 1940, e depois se mudou para Minas Gerais, nos anos 1950. Em 1952, com 20 anos, entrou no jornalismo para nunca mais deixar de escrever. "Exceto os mandatos que cumpri, todo o tempo só fiz jornalismo. Estudei filosofia e ensinava. Estudei direito, e quando me formei não trabalhei em direito. Faço só jornalismo", diz. A partir dos anos 1960, Nery engajou-se na política. Eleito vereador e deputado estadual na Bahia, e deputado federal no Rio de Janeiro, ele apoiou Leonel Brizola em campanhas partidárias nos anos 1980. No primeiro ano daquela década, Nery viu de perto Brizola rasgar um papel com a legenda do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), seu antigo partido, depois de retornar do exílio imposto pela ditadura militar.
Experiência
Mas as melhores lembranças de Nery foram vividas na Europa. "Dois anos em Roma e dois anos em Paris. Um grande presente que Deus me deu. Cheguei antes como estudante pobre ou como jornalista pobre. Conheci a Europa assim. Mas cheguei dessa vez como adido cultural. Não há mestrado ou doutorado que pague por uma experiência como essa", observa. De lá, continuou produzindo reportagens para televisão, rádio e veículos impressos.
"O livro é absolutamente verdadeiro. Tinha material para fazer três livros e fiz um só. Muita coisa tive que esconder, nomes de muitas pessoas", garante. Inquieto, sempre mudando de lugar, e sofrendo apreensões na época do militarismo, o escritor perdeu documentos, mas não a boa memória. Escreveu cinco décadas de história brasileira e pessoal em seis meses.
Quando completou 70 anos, percebeu que muitos amigos e testemunhas de épocas passadas estavam começando a morrer. "Não queria escrever um livro em que todo mundo tivesse morrido. Quis fazer um retrato dessa história", revela.
A nuvem: o que ficou do que passou
De Sebastião Nery. Editora Geração Editorial, 624 páginas. R$ 49,90. Lançamento hoje, no Lago Sul (SHIS, QL 14, Cj. 8, Casa 19), a partir das 19h.