tranquilidade de morar em Ipanema, há uma década, dispensando carro e fazendo "quase tudo a pé" está prestes a ser desafiada para o múltiplo Nelson Motta, na capital para integrar o projeto Escritores brasileiros (Centro Cultural Banco do Brasil). "Brasília é uma cidade difícil, tenho que ser guiado", diverte-se. Sem senso de orientação aguçado, ele atribui a limitação ao fato de ser totalmente urbano, "bem de bairro", como situam as lembranças dos nove anos morados em Nova York. "A minha filha dizia: pai, você pensa que mora em Nova York, mas você mora é entre a Rua 22 e o SoHo", reforça, bem-humorado. Ultimamente, Motta tem se firmado no campo das letras, com os livros Força estranha e Ao som do mar e à luz do céu profundo, além dos projetos dramatúrgicos.
Montado com participação da atriz Arlete Salles - que lerá textos de Nelson Motta -, Escritores brasileiros (hoje, a partir das 19h30) traz, na opinião do letrista, compositor e produtor musical, "a certeza de gargalhadas garantidas". "Sempre acompanhei a evolução da Arlete como atriz. Os textos selecionados têm muito humor, e, na comédia, ela arrasa. Não perdi um Toma lá dá cá e escrevia artigo para jornal ressaltando a genialidade dela", recorda Motta, também jornalista.
Acostumado a palestrar, ele só não suporta, literalmente, o posto de referência imediata para teses universitárias e afins, com recorrentes pedidos de entrevistas sobre música nacional. "Isso é muito chato. Sempre digo: 'o que eu sabia de melhor, eu já coloquei no livro Noites tropicais, - recorra a ele. O que eu não coloquei era coisa irrelevante.' Não vou perder horas do meu dia para repetir a um estranho episódios que já escrevi num livro", observa. Ter a publicação adaptada para uma série de tevê está entre as propostas que Motta vem analisando. "Já se chegou à conclusão de que para cinema Noites tropicais não dá. Já foram feitas várias tentativas e a graça dele está justo nos detalhes, nos pequenos causos, no envolvimento do leitor com aquele narrador. Se colocasse isso em 90 minutos, ia ficar um Globo Repórter", prevê.
A participação entre os criadores do oitentista Armação ilimitada (ao lado de Euclydes Marinho, Antônio Calmon e Patrícia Travassos) é um orgulho pessoal, ao mesmo tempo uma bússola para o consistente momento de criação. "As pessoas lembram muito dos livros, dos discos, dos shows, mas estou adorando essa incursão na dramaturgia. É uma retomada do clima do Armação. Em 1985, morava na Itália e voltei para fazer isso, que foi uma coisa maravilhosa, um programa que revolucionou a televisão", demarca.
Um seriado do qual não pode "nem falar o tema", ao lado de Euclydes Marinho, e uma minissérie - também misteriosa ("há cláusula de contrato com multa, se vazar") - a ser produzida por Fernando Meirelles e corroteirizada por Patrícia Andrade (de Dois filhos de Francisco) estão nos planos de 2011. "Estou muito afastado do mundo musical. Isso me tomava muito tempo e quero escrever mais. Tenho várias propostas de trabalho boas, como roteirista", explica. Nas prateleiras de casa, os CDs cada vez menos se avolumam, em contraponto aos livros. "Dos CDs, guardo duas ou três músicas que passo para o iPod, e tchau! Me interessa manter aqueles com dedicatórias como as do Lenine e do Ed Motta. Agora, vinil, eu tenho 5 mil", revela.
Sem muito mérito no quesito organização, Nelson Motta atribuiu o atual dinamismo à rotina regrada e feliz. "Acordo muito cedo, assim como durmo e trabalho num lugar lindo, tranquilo. Cheguei a um momento da minha vida, aos 66 anos, em que, felizmente, posso escolher os meus trabalhos. Então, eu faço só o que eu gosto, mesmo", avalia. Sem interferência imediata no projeto, ele assume a curiosidade pela adaptação cinematográfica de Bandidos e mocinhas (em produção, sob o comando de Paula Barreto), enquanto harmoniza os relatos e os projetos em torno de duas personalidades já falecidas: Glauber Rocha, que terá "biografia da juventude" registrada no livro A primavera do dragão; e Tim Maia, com trajetória dupla nas artes - a partir do livro dele Vale tudo - O som e a fúria de Tim Maia, Mauro Lima (Meu nome não é Johnny) dirigirá longa-metragem e, em abril de 2011, estreará peça ("musical à la Broadway") com contribuições do próprio autor.
Sintonia presente
A ponte entre música e cinema, recentemente, também seduziu o Nelson Motta espectador, sempre disposto a opinar, quando os amigos criadores surgem com um produto cultural, caso de Arnaldo Jabor e o longa-metragem A suprema felicidade. "Achei muito bonito, muito delicado, conhecia muitas das histórias, por ser amigo do Jabor há 40 anos. Ele escreve maravilhosamente bem. Nem sempre, ele pensa maravilhosamente bem", brinca, em torno das divergências políticas com o colega. "As melhores coisas que Jabor escreveu, nos últimos anos, são as lembranças da juventude dele. Ele tem a medida certa do sentimento, sem ser sentimental", pontua.
Avesso a governo ("qualquer que seja"), Nelson Motta tem admiração pelo "crescimento institucional do país, nos últimos 20 anos". Mas o escritor opina que "o sistema político é fraquíssimo".
"Os partidos não são representativos, não têm programas, trazem um grupo de interesses. O quadro partidário, aliás, está atrasado em relação ao Brasil avançado em termos de economia e cultura", comenta.
Passar pela capital, integrado ao projeto do CCBB, cutuca a memória do autor das letras de Coisas do Brasil e Como uma onda, uma vez que, adolescente, nos anos de 1960, veio prestigiar a posição do avô, ministro do Supremo Tribunal Federal. "Passei duas férias em Brasília, logo que ele mudou. Então, era tudo faroeste, terra vermelha, uma coisa incrível e, verdadeiramente, uma aventura", relembra.
A neblina nostálgica, porém, logo se dispersa. "Não tenho, absolutamente, nem um pingo de saudosismo. Acho até porque vivi intensamente todas as fases da minha vida nas cidades em que morei. Não é que a energia tenha se esgotado, mas foi tudo de bom tamanho. Acho que as pessoas mais saudosistas são aquelas que não fizeram na sua época tudo o que queriam ter feito", conclui.
Escritores Brasileiros
Palestra e leitura de textos de Nelson Motta, com a presença do autor e da atriz Arlete Salles. Dia 10 de novembro, às 19h30, no Teatro I do CCBB (SCES, Tr. 02, Cj. 22, 3310-7087). Entrada franca mediante retirada de senha (distribuída uma hora antes). Não recomendado para menores de 12 anos.