É muito comum a história de um filme ser baseada ou inspirada em narrativas emprestadas pela literatura. Atualmente, mesmo com o aprimoramento da experiência cinematográfica, como o advento do 3D, a tela ainda carece do papel, e agora não apenas para criar imagens espetaculares a partir de palavras escritas. Depois de passar pelos cinemas, tornou-se habitual um filme receber dossiê de bastidores da produção, uma espécie de antecipação dos extras prometidos em DVD e blu-ray.
James Cameron, aludindo aos apêndices explicativos de O senhor dos anéis, explica e expande o universo de Avatar em Os Relatórios confidenciais do mundo de Pandora, lançado em junho. Wagner de Assis também confidencia curiosidades dos sets de filmagem em Nosso lar - bastidores do filme, disponível ao público desde o início do mês. Fernando Meirelles, com atraso de dois anos, entrega Cegueira, um ensaio, com textos publicados no blog que mantinha quando estava rodando o filme Ensaio sobre a cegueira (2008).
Mas a demora é positiva. Com o apoio da irmã, Silvinha Meirelles, idealizadora e editora, o livro (em formato generoso de 380cm por 224cm) exibe 285 fotos em alta definição - algumas com tratamento em verniz, em relevo - e um texto exclusivo de José Saramago, autor da aclamada obra literária adaptada pelo brasileiro. E um bônus: o roteiro, escrito por Don McKellar, vem em papel grampeado com o volume, como manda a tradição.
Meirelles falou ao Correio por e-mail, antes de viajar para o Leste Europeu em busca de locações para o seu novo filme, ainda sem título. Ele compara o novo projeto a Ensaio sobre a cegueira, que saiu do Festival de Cannes rechaçado pela crítica, mas teve boa recepção no Brasil. "Meu próximo filme, aliás, também será um filme menor, para público mais específico", adianta. O livro-ensaio, publicado pela Master Books, foi ideia de Silvinha, que teve a inspiração ao ver fotos dos sets, clicadas por Alexandre Ermel e Ken Woroner. "Eu lia o blog e achava que aprendia sobre cinema. O Fernando chegou em casa com um calhamaço de fotos. Eu quis fazer um livro. Ele aprovou. E aprende-se com os textos. É diferente, divertido. Como ele escreveu não pensando em publicar, ajudava a refletir sobre o que estava fazendo, as dúvidas que tinha, os processos de decisão", conta Silvinha.
A edição das imagens procura semelhanças com a fotografia do filme, de César Charlone, bem como a própria estrutura da publicação. A capa em branco lembra a "cegueira branca" descrita por Saramago, e é dividida horizontalmente por uma tira de papel negro, impressa com a imagem de um olho mágico e o título do filme inscrito em Braille.
Mikha Seddig Jorge, responsável por capa, projeto gráfico e edição de imagem, pensou até mesmo na textura da apresentação da obra. "O filme tem uma coisa de uso, de sujeira. E a gente teve esse preocupação na capa, que suja de propósito. É pra isso. É um filme sujo, apesar de branco", explica Silvinha. Cegueira, um ensaio é uma homenagem de Meirelles a Saramago. E, por fim, do cinema e da fotografia à literatura.
TRÊS PERGUNTAS - FERNANDO MEIRELLES
Dois anos após o lançamento do filme e com a morte recente de Saramago, quais são as suas impressões sobre a sua realização e a difícil tarefa de adaptar um livro tão importante, de um autor tão querido?
Ao terminar o filme tive uma certa crise com ele, achei meio frio, mas passado um tempo acho que é equilibrado. Fiz as pazes com ele. Graças a este projeto, acabei produzindo o documentário José e Pilar, sobre a relação do Saramago e da Pilar (Maria Pilar del Rio, esposa do escritor) e isso me deu enorme satisfação desde o início. O filme é emocionante, de tirar lágrimas. Estreia no Brasil em 5 de novembro, para quem gosta da obra do autor é imperdível. Para quem não gosta também, já que inteligência, humor e emoção nunca são demais.
Qual foi a sua motivação ao abrir o blog e registrar ali um diário pessoal das filmagens? É uma coisa que você faria em outras produções, ou única daquele momento - já que se tratava de um filme tão delicado?
Havia feito o mesmo em O jardineiro fiel e percebi que escrever, enquanto preparo e rodo um filme, me ajuda a pensar. Acho que vou adotar o hábito.
Ensaio sobre a cegueira não é tão querido quanto Cidade de Deus, tanto pela crítica quanto pelo público. Divide opiniões. A que se deve essa resistência?
A crítica internacional pegou pesado, mas no Brasil foi bem. Prevíamos um público de 450 mil espectadores e o filme fechou com 900 mil. Para um filme duro destes foi bem. Esse sucesso ajudou a cicatrizar as feridas das pancadas que tomei em Cannes. De cara, sabia que não seria um filme tão popular e pop como Cidade de Deus, mas foi uma opção.
Texto de José Saramago especialmente para o livro
"Houve um tempo em que eu respondia que não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adaptação de romances meus ao cinema. Digamos que eu era então uma espécie de radical da escrita: o que não passava pela palavra posta num papel simplesmente não existia. Fernando Meirelle foi uma das vítimas dessa intransigência. Quando Ensaio sobre a cegueira foi publicado no Brasil, salvo erro em 1995, imediatamente me escreveu para manifestar o seu interesse em adaptá-lo. Teria sido o seu primeiro filme, antes de Cidade de Deus, antes de O jardineiro fiel, se não tivesse esbarrado com o muro da resistência do autor a conhecer os atores que iriam dar consistência e outra realidade às figuras desenhadas pela sua imaginação. Não me lembro do que sucedeu depois. Escrevi a Fernando expondo-lhe as minhas razões? Não lhe escrevi sequer, deixando que o silêncio respondesse por mim? Melhor do que eu, ele o saberá. Ao autor do livro só lhe resta pedir desculpa e agradecer a sua generosidade de espírito, uma generosidade que lhe permitiu aceitar a minha recusa sem a menor acrimônia. Tanto mais que, agora sim, já conheço a cara das minhas personagens. Será preciso dizer que gostei delas? Será preciso dizer que gostei, e muito, do filme? Nunca esquecerei a tremenda emoção que experimentei ao ver passar por trás de uma janela, em fila, as mulheres que vão pagar com os seus corpos a comida que lhes havia sido sonegada, a elas e aos seus homens. Essa imagem resume, para mim, todo o calvário da existência da mulher ao longo da História."