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Em livro de Martin Cruz Smith, a Rússia atual busca voltar a ser potência

Às sombras das glórias do passado, uma nação decadente tenta reencontrar o rumo, em busca da potência que um dia já fora. Essa é a forma que a Rússia moderna é retratada no novo thriller do escritor norte-americano Martin Cruz Smith, O Fantasma de Stálin. Há um sentimento de certa nostalgia em muitos cidadãos, saudosistas do orgulho, da segurança e da certeza que sentiam sob o comando de Joseph Stálin (1878-1953).

Entre os feitos do ditador, as estações de metrô da capital são um dos maiores orgulhos dos moscovitas. É exatamente em uma dessas que a história começa. Surgem testemunhas da aparição do fantasma do ex-governante da União Soviética nos túneis escuros do metrô. Os rumores começam a se espalhar e disseminam inquietude cidade afora.

A tarefa de investigar o estranho caso é confiada ao detetive Arkady Renko, que não está disposto a acreditar no episódio sobrenatural. No entender do cético personagem, o fenômeno tem todas as características de um teatro montado para fins políticos. O objetivo seria reacender a memória latente da grandiosidade do passado no povo russo e, assim, viabilizar a candidatura ao Senado do também investigador Nikolai Isakov, ex-boina negra ; espécie de tropa de elite do Ministério do Interior Russo ; e veterano da Guerra da Chechênia.

Expoente do ultranacionalismo russo, Isakov é ligado a Arkady não só pela profissão, mas especialmente por causa de um relacionamento suspeito com Eva, companheira do protagonista. Ao longo da investigação, o inspetor-chefe descobrirá segredos que remontam desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45) à Guerra da Chechênia (1994-96) ; como as reminiscências de seu pai, general do Exército e um dos mais próximos colaboradores de Stálin, e os esquadrões da morte do Exército russo, que matavam rebeldes chechenos a sangue frio.

Quando Renko é forçado a deixar as ruas pavimentadas da ocidentalizada capital ; com suas BMWs, o balé Bolshoi e todo o esplendor de uma metrópole moderna ;, ele se depara com a Rússia verdadeira, repleta de lama, pobreza e sofrimento. Esse choque de realidade é uma mostra da capacidade de Smith em conduzir uma história policial envolvente, ao mesmo tempo em que traça um retrato vívido do país.

Essa decadência é ilustrada pela predominância da vodca, vício que consome os russos. O destilado é onipresente: certos personagens estão sob constante efeito do álcool e, em alguns momentos, chega a afetar o rumo da história. O próprio Renko é uma representação dessa realidade. Experiente, o investigador recusa-se a usar uma arma, sempre guardada em um cofre. A atitude, que pode ser confundida com autoconfiança é, na verdade, uma prova de conformismo: o detetive busca apenas a verdade por trás da suposta aparição do fantasma de Stálin, sem tentar, de fato, mudar o rumo dos acontecimentos ; como se fosse apenas mais um sobrevivente do passado glorioso que vivenciou.

Os insights do protagonista são um capítulo à parte. Meticulosamente estruturados, criam o perfil psicológico do personagem e inserem o leitor em seu mundo. Quem conhece a Rússia pelos olhos de Arkady Renko vê um país cinzento e percebe a sua descrença no futuro. Já os personagens secundários são reflexos da sociedade desse país. De tão bem construídos, estes se combinam, de forma perspicaz, com as características pessoais de Renko, o que faz o desenrolar do enredo soar natural, e não forçado.

Apesar de ser o sexto livro protagonizado por Renko, o autor não explora o personagem consagrado como mero caça-níquel. Pelo contrário. Smith escreve com o mesmo afinco e criatividade de sua obra de estreia, Parque Gorki. A forma que a história é contada é intrigante. Seja em momentos amorosos ou ;mortais;, tudo é compartilhado com ar de indiferença, o que faz o estilo de Smith ser tão envolvente.

Martin Cruz Smith nasceu na cidade de Reading, na Pennsylvania (EUA). Duas vezes vencedor do Prêmio Hammet, da International Association of Crime Writers, recebeu também o prêmio inglês Goldend Dagger. É autor de mais de 10 romances. O detetive Arkady Renko protagoniza seis deles, como Parque Gorki, no qual faz sua primeira aparição, e Havana. Atualmente, mora na Califórnia com a esposa e os três filhos.

Trecho
Rumo a Tver, Arkady deixou Moscou e entrou na Rússia.
Nada de Mercedes, nem Bolshoi, nem sushi, nem mundo pavimentado; em vez disso, lama, gansos, maçãs caindo de uma carroça. Nada de belas casas em comunidades fechadas, mas chalés divididos com gatos e galinhas. Nada de bilionários, mas homens vendendo jarras na estrada porque a fábrica de cristal onde trabalhavam não tinha dinheiro para pagá-los, então pagava-os com mercadorias, fazendo de cada homem um comerciante que segurava uma jarra com uma das mãos e espantava moscas com a outra.
Para um dia de inverno, o clima estava anormalmente quente, mas Arkady dirigia o veículo de vidros fechados por causa da poeira que os caminhões levantavam. O Zhiguli não tinha ar condicionado nem rádio, mas o motor podia funcionar à base de vodca se necessário. De tempos e tempos, a terra era tão plana que o horizonte abria-se como um leque, e prado e lodaçais se estendiam em todas as direções. Uma estrada de terra se ramificava por um punhado de chalés e uma igreja que parecia um bolo de Páscoa inclinado, emoldurada por bétulas.
No banco de carona, Elena Ilyichnina olhava com tristeza para a paisagem do campo que passava. Para espanto de Arkady, ela aceitara a oferta de uma carona até sua cidade natal para ver a mãe. As aldeias no caminho estavam definhando, esvaziadas pela evacuação em massa dos jovens, que iam para Tver, para Moscou ou para São Petersburgo em vez de sofrer o que Marx chamara de "a idiota vida rural".