Arthur Omar foi ao Afeganistão em 2002 com a intenção de trazer um pedaço dos budas de Bamiyan, destruídos pelo Talebã. Voltou sem as pedras que planejava expor na Bienal de São Paulo, mas deixou na Ásia Central um pedaço de si mesmo. Oito anos após a viagem, Omar voltou às 10 mil imagens produzidas durante o trajeto. Na época, a Rede Globo realizou um documentário no qual acompanhava a empreitada do artista. Agora, foi a vez de editar o material e mergulhar novamente nas experiências afegãs. Omar dormiu e comeu na gráfica para ter certeza de que Viagem ao Afeganistão saísse conforme o planejado.
São 626 fotografias cujo foco está, principalmente, nos rostos e nas figuras cruzadas durante a trajetória. Claro, há paisagens ; e muitas ;, mas elas funcionam como retratos de uma terra cuja existência o artista até hoje não compreende bem. Na verdade, Viagem é uma espécie de antilivro. No fim do segundo texto, no qual narra a viagem, Omar ;revoga; o próprio trabalho. É uma forma de explicar que a força das imagens não suplanta uma experiência muito íntima vivida pelo artista.
A distância e a incompreensão em relação à realidade e à cultura afegãs são tamanhas que Omar não pretendeu trazer de lá uma visão. O importante foi, segundo o artista, as sensações experimentadas. Durante as três semanas da viagem, ele se viu assaltado pelas próprias memórias, lembranças de situações e pessoas esquecidas e recuperadas por conta da estranheza vivenciada na Ásia Central.
A mente do artista ficou tão baratinada com a experiência que foi buscar nos cantos mais reclusos da própria memória imagens que afirmassem a sua identidade. ;Passei por experiências psíquicas, vamos dizer assim. Nem tanto aventuras, embora a viagem tenha sido uma grande aventura. Mas por experiências realmente profundas de transformação, de meditação, de experiências com a memória que praticamente me mudaram. Uma parte minha ficou lá. Essa parte, às vezes, se comunica comigo e me manda novas histórias. As pessoas dizem que isso é mentira porque aconteceu muito depois da viagem. Não. Eu estou lá e uma parte minha continua encontrando pessoas, aprofundando experiências. Posso dizer que o Afeganistão, para mim, como um lugar imaginário, está mais presente do que a minha terra natal;, declara, com convicção.
Versátil
Antropólogo, artista plástico, fotógrafo e documentarista. Todas essas definições habitam a assinatura artística de Arthur Omar. Durante os anos 1970, o artista fez verdadeira guerrilha cinematográfica pulverizando a linguagem documental em filmes como Congo (um filme em branco), Tesouro da juventude (feito com fragmentos de outros filmes atirados no lixo) e Triste trópico. Migrou para o vídeo nas décadas seguintes e se redefiniu como realizador. ;No vídeo, de alguma forma, o elemento desconstrutivo se transforma num elemento reconstrutivo. A questão epistemológica da presença da verdade ou não dentro do filme dá lugar a construções temporais em que a questão do êxtase vai se tornar premente. É retórica. Uma relação som/imagem/ música, emitindo experiências de conhecimento cognitivo. O vídeo está muito ligado ao meu movimento, à circulação do meu corpo no espaço. Tudo que faço, em grande parte, tem um elemento documental;, compara.
A atividade cinematográfica, negligenciada durante anos, deverá ser retomada no ano que vem. Culpa do estado de letargia em que se encontra o cinema brasileiro atual, considerado ;pouco estimulante; pelo artista. ;Não cultuo nenhum cineasta no Brasil. O único que era bom já morreu. E vivo, só tem um. Acho que é um espaço em que posso dar contribuições importantes;, declara, sem falsa modéstia.
Na fotografia, publicou livros importantes como Antropologia da face gloriosa (ensaio em preto e branco sobre o carnaval) e O esplendor dos contrários (todo feito na Amazônia), ambos publicados em edições luxuosas pela editora CosacNaify. Omar circula sem dificuldades por galerias de arte e pavilhões de bienais. Mesmo considerando obsoletos o modelo bienal e a arte atual. ;Com as novas possibilidades de circulação da imagem, as novas tecnologias, esse ciclo da arte contemporânea acabou. A bienal é essencialmente arte contemporânea. Não sei se os artistas que criticam a bienal são muito diferentes da bienal ou se essa crise não está dentro da própria arte;, resume.
Monumentos de papel
Quero que cada trabalho meu tenha um caráter monumental. No sentido de ser uma coisa definitiva, não dentro da cultura, mas dentro do que posso oferecer. Quero que seja como um monumento de pedra construído para ficar. Muitas vezes meu trabalho, que é considerado desconstrutivo ou experimental, não passa pela estrutura da imagem. A estrutura é perfeita.
Desconstrução x reconstrução
Meu trabalho fotográfico não é de desconstrução. Eu diria que é uma reconstrução. Coloquei a minha última exposição sob o signo do reconstrutivismo. Não se trata da ideia de desconstruir a linguagem como a arte contemporânea faz. Não estou em busca disso. Estou em busca da construção, quero que meu trabalho ofereça algo novo, que não está presente lá. Pode ser olhar uma pessoa de perto. Tem uma humanidade, uma densidade.
Acusação
Sou acusado de documentarista ou fotógrafo. No momento em que estou fazendo fotografia, não a estou usando como um simples instrumento estético. Não, estou fazendo fotografia levando às últimas consequências os recursos técnicos e estéticos dentro da história da fotografia. Quando você olha isso pelo viés de arte contemporânea, às vezes aquilo parece fotografia. Aí você chega e olha um livro sob o viés do fotógrafo profissional. Aí parece arte contemporânea. São desafios.
Cinema
Não posso passar no cinema um filme de cinco horas sobre um cavalo suspenso no ar. Voltarei a esse circuito no ano que vem. Tenho uma série de outros trabalhos em andamento, inclusive ficção. O ano que vem vai ser um ano importante para mim porque, de alguma forma, pretendo encerrar essa atividade artística e voltar um pouco para a atividade cinematográfica. Acho que é um espaço em que posso dar contribuições importantes. Na verdade, já dei. Isso não está na história porque meu trabalho é muito individual.
Bienal
O modelo de bienal está ultrapassado. Isso que se considera arte, mesmo a avançada, é ultrapassado. Estamos numa era seguinte e a bienal está numa era anterior. Qualquer bienal. É uma era em que o que a gente entende como arte tem uma função diferente de cognição. Não é simplesmente pegar determinado tema da realidade ; seja político, erótico ou sexual ; e fazer um trabalho de arte em função daquilo. Estou operando num outro nível. Quando estou no Afeganistão, não estou fazendo arte. Estou lá como homem. Estou lá como eu, viajando dentro de mim.
Documentário
O documentário brasileiro hoje tem basicamente duas linhas. Uma é fundada na palavra. Há um profundo rebaixamento da presença sensorial e mesmo da linguagem da imagem. Alguns filmes são mais interessantes, outros menos. Mas os documentários, praticamente, são fundados na palavra. Quando você pensa em documentário hoje, já pensa em depoimento. Alguém falando. No fundo, a base é a televisão: a estrutura da imagem, a presença do corpo dentro do espaço, a presença da voz dentro filme é extensão da tevê. Tem outra linha de filmes, profundamente estetizantes. A presença da imagem é muito forte e o elemento de informação é rebaixado porque se procura fazer com que aquela imagem produza um efeito de beleza. São filmes que têm o desejo de arte. Neles, o compromisso com a realidade é muito baixo. São interessantes em contraposição a essa vertente verbal. Mas falta a temporalidade, falta a pulsação. O controle da imagem é total, mas o controle do tempo é discutível. Eu seria a terceira linha.