Me espantei com a pergunta de uma editora de cultura: ;Por que montar Orfeu;? Depois, convivi com ela ao longo do processo de produção. Em toda entrevista, lá estava a pergunta que não quer calar: ;Por que montar Orfeu;?
Montar ;Orfeu; tem sido uma sucessão de alegrias e perplexidades. Depois de submeter o projeto ao Ministério da Cultura e ter obtido meios de captar financiamento, eis que o mundo é supreendido pela maior crise econômica desde 1929. Tudo parou, as empresas se retraíram nos investimentos e o que já era pouco sumiu de vez. A resposta brasileira à crise recolocou o país funcionando seis meses depois, mas foi difícil encontrar um dirigente negro nas grandes empresas nacionais. Circular com uma peça que é uma homenagem ao negro brasileiro e tem como rubrica do autor a indicação de um elenco negro no mínimo é muito original para os padrões ainda vigentes entre nós. Até que ele apareceu e também se encantou, daí pra frente os apoios começaram a aparecer e o projeto avançou. Me sentia retirando da cristaleira da cultura nacional uma de suas obras mais importantes ou metaforicamente extraindo o pré-sal cultural, riqueza negra há muito enterrada. Por que montar Orfeu?
Desde sua estreia em 1956 a peça nunca esteve em circuito apesar de premiada e cultuada. O texto de Cacá Diegues narrando o impacto que teve ainda jovem acompanhado de seu pai no Theatro Municipal ao ver a peça já justificaria o interesse, mas a autobiografia do recente presidente americano Barack Obama expressando a influência decisiva em sua história do filme adaptado da obra de Vinicius, consolidou o desejo. Um misto de curiosidade e urgência transformou em exigência a empreitada, Miucha foi quem melhor definiu: ;vc está encantado por ;Orfeu;, ele é o mito do encantamento.;
Desde o princípio, numa reunião de amigos, respondi que o diretor seria Aderbal Freire-Filho, que eu só conhecia de longos papos com o amigo comum Rubens Gerchman, que já não está entre nós. Com Aderbal debati e discuti a peça por dois anos e, nesse tempo, fui me tornando mais um ;aderbete;, slogan que cunhei ao verificar o imenso prestígio e adoração que ele tem no ambiente cultural. Sua inteligência, talento e liderança é aclamada no meio e adjacências de forma totalmente demais.
Descobri um texto de pós-graduação da USP sobre Orfeu e mais tarde da Sorbonne. Tive acesso aos originais da época que saudaram a peça como um marco cultural no Brasil. Li que Jorge Amado observou sobre a peça: ;É um dos pontos altos da obra poética de Vinicius, e a música, toda ela é excelente;. Mas por que montar Orfeu?
Ninguém que eu conheço diretamente viu o espetáculo. Suzana de Moraes, a filha do poeta, assim como Cacá Diegues, comentou que esteve lá no Municipal na célebre série de seis récitas do evento. Me emocionei depois por saber de Jaques Morelenbaum que seu pai estava entre os músicos na efeméride. Entendi nesse momento o motivo de sua empolgação ao ser convidado para partilhar a direção musical por sugestão de Gilberto Gil.
Orfeu determina uma virada na história da música popular, ainda que a peça só tenha ficado em cartaz em 1956 por dez dias no Theatro Muncipal. Diversos ingredientes já anunciam o surgimento do novo gênero musical, a bossa nova, tais como a utilização de harmonias cromáticas e dissonantes, a articulação entre a música e a poesia e o lugar reservado ao violão no conjunto instrumental. Na ouverture ele sola a Valsa de Eurídice, tema romântico da peça, e, no decorrer da peça, sola também introducões dos sambas e os tristes acordes com que Orfeu procura manifestar a dor e os conflitos que lhe vão no íntimo. O violão em nossa montagem é de Jaime Alem que co-dirige o musical. Por que montar Orfeu?
O mistério da ausência de Orfeu nos palcos brasileiros por mais de cinquenta anos não se resolve apenas com sua adaptação para o cinema. Se o primeiro filme, de 1959, conquistou todos os prêmios, inclusive o de mais premiado da história do cinema, foi responsável também pela apresentação internacional da nova música brasileira revelando ao público estrangeiro Tom Jobim, Vinicius e Bonfá. Diversos músicos franceses e americanos fascinados gravam e evocam a descoberta de um Novo Mundo sonoro. A consagração no Festival de Cannes e no Oscar definem o sucesso e marcam o ponto de partida da expansão da música brasileira pelo mundo. Prenúncio da Bossa Nova, ;Orfeu Negro; traça um triângulo musical inédito entre a França, o Brasil e a costa oeste dos Estados Unidos. O filme foi também denunciado em nome da autenticidade da própria cultura brasileira. Análises mais modernas repensam o filme nas relações interculturais entre Brasil, França e Estados Unidos. Apesar das críticas formais e ideológicas, o filme constitui um documento de primeira ordem para o estudo da paisagem cultural carioca e da história das transferências culturais. As críticas da época comparam a mediocridade do filme com a criatividade da peça, obra original, esta sim considerada verdadeiramente brasileira. Cacá Diegues nos fins dos anos 90 lançou sua versão e disse: ;O filme Orfeu Negro enveredava por uma visão exótica e turística da cidade, o que traía o sentido da peça e passava muito longe das suas fundadoras e fundamentais qualidades;;
Mas por que montar Orfeu?
Uma curiosidade na escolha do elenco. No filme de 59, o diretor Camus teve um cuidado especial e privilegiou atores não profissionais que deveriam possuir a inocência dos iniciantes e se distinguir pela beleza singular. Publicou retratos falados de Orfeu e Eurídice no jornal O Globo da época procurando ;um rapaz negro de 27 anos medindo 1,75 e 1,80. E uma jovem negra de 20 anos.; Agora, em nossa peça, por outros caminhos parece que cumprimos o ideal do cineasta, os baianos Brás e Aline corresponderiam aos critérios de sua seleção. Na peça de Vinicius a presença do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento foi a base do elenco. Cumprimos em ato a cerimônia de benção ao visitar o baluarte negro em seu Instituto que consagrou ainda no período de ensaios nossa montagem.
Acho que temos muitos motivos para encenar Orfeu.
Gil Lopes , produtor de Orfeu