É muito fácil olhar para São Paulo como uma cidade feita de camadas, abrigos de faunas e paisagens particulares. O difícil é conseguir tratar as camadas em um único romance sem estereotipá-las. Encontrar nela personagens, histórias e mundos diferentes, independentes, que raramente se tocariam, e transformar o conjunto em narrativa coesa marcada por interconexões improváveis, mas verossímeis. Como desaparecer completamente se aventura por esse caminho e faz um percurso bastante convincente graças à habilidade narrativa de André de Leones. São Paulo é o cenário e, ao mesmo tempo, personagem das histórias fragmentadas desenvolvidas no livro. O título, inspirado em música do Radiohead, anuncia que as histórias de amores e desamores contadas pelo autor são pequenos grãos de areia na imensidão da maior cidade da América do Sul. ;Desaparecer completamente em São Paulo não é algo difícil, pelo contrário;, reconhece o autor.
Em 2007, a convite do também escritor João Paulo Cuenca, Leones passou um mês na capital paulista com a tarefa de produzir um romance para o projeto Amores expressos. Outros colegas foram enviados a capitais no exterior, como Lisboa, Paris e Tóquio, destino do próprio Cuenca. Leones foi o único a ficar no Brasil. O livro não leva o selo do projeto ; como todos os que foram publicados até agora ; porque não houve interesse por parte dos organizadores em publicá-lo. ;Fiquei bastante chateado na época, mas agora já superei a situação. O que importa é que o livro tem vida própria, isto é, independe do tal projeto para existir literariamente, e foi lançado por uma grande editora;, avisa o autor, que publica o romance pela Rocco, com a qual já assinou contrato para o próximo livro.
Como desaparecer completamente conta histórias de amor que lembram a ciranda da música. Mariana, que se apaixona por Augusta, deixa Marcelo, neto de Angélica, envolvida com septuagenário João Bosco, que troca a senhora por uma moça de 20 e poucos. São histórias que Leones imaginou na esquina da Paulista com a Augusta, enquanto observava as pessoas, o movimento e a vida de uma das centenas de esquinas que nunca dormem no coração da cidade. ;Como desaparecer completamente é, em grande parte, uma espécie de reação à cidade. Não é um romance reflexivo, pausado. Eu nunca tinha passado tanto tempo, ininterruptamente, em São Paulo. Pude criar uma rotina, escolher alguns locais de que gostava mais e que achava que poderiam estar no livro. Desde o princípio, decidi que seria um romance fragmentado, com várias histórias se desenrolando paralelamente, de tal maneira que pudesse trafegar entre uma e outra como quem muda o canal da televisão.;
Estereótipos
Mariana, Marcelo, Augusta, Angélica e João Bosco vivem histórias cujas pontas acabam por se tocar. São expressões de ambientes completamente diferentes e não chegam a ser estereótipos de personagens solitários perdidos numa metrópole impiedosa, mas têm em comum a solidão. É esta condição que Leones parece querer tornar protagonista do romance, o que pode soar uma obviedade quando se trata do cenário paulistano.
A mesma solidão na qual são mergulhados personagens de escritos anteriores. Em Hoje está um dia morto, inspirado em amigos que deram fim à própria vida, os jovens suicidas experimentam um vazio profundo. ;Eles (esses personagens) estão mesmo inapelavelmente sozinhos. No fim das contas, é a mesma tristeza ancestral, indefinida. Esteja em Silvânia, São Paulo ou Jerusalém, trafego mais ou menos pelas mesmas ruas. Não tento fugir disso, isto é, de mim. E não tenho medo de me repetir porque, se por um lado os temas que abordo são similares, os registros e as formas que busco para desenvolvê-los são sempre diversos;, alerta Leones, nascido em Silvânia, cidade na qual perdeu vários amigos e para onde não quer voltar em hipótese alguma. Voltar, só mesmo para Jerusalém, de onde acaba de retornar e é cenário do próximo livro.
COMO DESAPARECER COMPLETAMENTE
De André de Leones
Rocco, 190 páginas. R$ 25
Confira trecho do livro
"Cortinas ao teto com o vento, claridade indo e vindo como se Deus brincasse com um interruptor.
Mariana, inquieta, abre e fecha e abre os olhos. Algo surgindo entre as paredes do crânio. Aflorando, talvez dissesse a avó de Marcelo. Algo surgindo entre as paredes do crânio e precisando assentar, ganhar forma, adquirir um corpo que se permita verbalizar. Algo doloroso, feito paredes que se movem, estreitanto um cômodo ; sua cabeça ; até que ele não exista mais. Ao lado dela, Marcelo ofega, os olhos fechados, a ereção diminuindo aos poucos. Como dizer a ele? Antes, entender o quê.
O quê: um certo tipo de iluminação.
Os olhos abertos, depois fechados, depois abertos outra vez e a ideia se desenhando na cabeça, desnecessário até mesmo olhar para Marcelo, tudo a ver com ele, está certo, mas desnecessário consultá-lo porque:
"Eu não amo você", ela não diz.
Um certo tipo de, sim, é isso mesmo ; uma espécie de iluminação.
Não diz, mas, deitada na cama, pensa (agora, sim) olhando para ele: Eu. Não. Amo. Você.
Iluminação, aqui: tudo se tornando claro. O que quer e como quer e como expressar tudo isso.
Pensa de forma pragmática, um catalisador decisionário instalado na cabeça, a decisão sendo tomada e prestes a ser comunicada, mas nada assim gratuito feito uma epifania, nada assim tão pobre, tão óbvio, tão fácil, nunca algo fácil, ou facilmente verbalizável. Assim, do começo ao fim. Do sentimento, ou sensação, à ação de comunicar, à obrigação de comunicar. Por que não apenas falar sem ter de necessária e obrigatoriamente comunicar? Uma certeza, duas certezas. As explicações. As malditas e sempre exigidas explicações."
Três perguntas - André de Leones
O que era São Paulo para você antes de passar um tempo por lá?
Para mim, São Paulo era e ainda é várias cidades justapostas, às vezes amontoadas. Ela não me parece ter uma identidade única, definida, mas uma sucessão delas, quase sempre contraditórias. O lugar-comum de se referir à cidade como uma Babel tem, obviamente, razão de ser. Decorre disso, também, a ideia de estruturar o livro de maneira fragmentada. Um romance que fosse várias coisas ao mesmo tempo, o que está explícito na segunda parte, em que cada capítulo tem uma forma específica: blog, e-mails, roteiro de cinema etc.
Por que se mudou para São Paulo?
Gosto muito de São Paulo. Ou, melhor dizendo, da ;minha; São Paulo: Perdizes, Higienópolis, a região da Paulista. Eu nunca gostei de Silvânia. Desde que me mudei de Silvânia pela primeira vez, aos 18, 19 anos, só voltei mesmo para passar algumas temporadas com os meus pais, que ainda residem lá. Quanto a Jerusalém, a ideia era viver lá por seis meses, e foi o que que fiz, em meados de 2009. Nunca me senti tão bem em um lugar. Tanto que, no futuro, planejo voltar.
Crueza e delicadeza se combinam na descrição das cenas de sexo.Qual sua postura na hora de escrever essas cenas?
É muito fácil soar ridículo ao descrever relações sexuais. Eu procuro ;enfeitar; o mínimo possível. Tento ser preciso. Nas minhas narrativas, o sexo é um componente importante. Em Como desaparecer completamente, o sexo aparece como uma via de conhecimento e/ou desconhecimento. Os personagens se descobrem e também se estranham por meio dele. Nesse sentido, é uma forma de diálogo muito franca, muito aberta e extremamente reveladora.