Cândido Portinari utilizou pincéis para dizer ao mundo em guerra que a paz era possível. Quando aceitou a encomenda dos painéis Guerra e Paz para a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, o pintor brasileiro tratou de expor as mazelas da destruição e a tranquilidade de um tempo sem guerra em duas enormes pinturas de traços cubistas e figuras de aspecto abrasileirado. São essas duas características que o grupo Matizes Dumont quer ressaltar nos 16 bordados encomendados por João Cândido Portinari, filho do artista.
O convite faz parte de um projeto de celebração do retorno dos painéis ao Brasil. O prédio da ONU vai passar por extensa reforma e, durante as obras, as pinturas de Portinari voltam ao país natal para um restauro e uma exposição itinerante programada para passar por Brasília em abril de 2011. Depois, os painéis serão mostrados no Grand Palais, em Paris, antes de retornarem para Nova York. Há décadas João Cândido investe na divulgação da obra do pai. Criou o bem-sucedido Projeto Portinari, o melhor trabalho de preservação e divulgação de um artista brasileiro já realizado no país, para catalogar e facilitar o acesso a todas as obras do pintor.
Para comemorar o retorno dos painéis, encomendou releituras de Portinari a vários artistas brasileiros. A família Dumont ficou encarregada dos bordados baseados nos estudos realizados para a obra, enquanto Milton Nascimento foi convidado a compor uma música para o pintor, e o coreógrafo norte-americano David Parsons preparou uma coreografia na qual o próprio artista dança com uma personagem do painel. Uma escultura também foi encomendada a Sergio Campos, que interpreta em bronze as duas pinturas. "Acho importante ter a maior quantidade de reinterpretações de Portinari", explica João. "Queremos fazer coisas que possam tocar os múltiplos sentidos das pessoas."
No caso dos bordados dos irmãos de Brasília, João quis associar a brasilidade da pintura do pai à tradição artesanal de desenhar com linhas e tecidos. "O bordado tem uma história tão brasileira. E os irmãos Dumont são a síntese do bordado no Brasil", diz. O grupo - formado pelos irmãos Sávia, Marilu, Demóstenes, Angela, Martha e a mãe, Antônia - dividiu o trabalho em 16 bordados. Em 1955, Portinari realizou uma série de 150 estudos preparatórios para as pinturas da ONU. O pintor planejou cada canto da obra, desenhou em crayon as expressões e as posições de cada figura e experimentou toda a paleta de cores antes de começar a pintar.
Os estudos serviram de referência para as bordadeiras. Demóstenes passou os desenhos de Portinari para tecidos e tapeçarias confeccionadas em Minas Gerais e as irmãs bordaram as cenas com fios brasileiros e estrangeiros. "Utilizamos fios de várias nacionalidades e isso é importante porque esse trabalho busca a paz, que precisa ser abordada a cada dia no cotidiano das pessoas", diz Marilu.
Os bordados reproduzem um total de 16 estudos em telas cujos tamanhos variam entre 1,5m x 1,5m e 0,8m x 1m. "A gente fez uma pesquisa enorme em textos, poesias e na obra, entramos na vida dele para recriar os estudos. Assim pudemos ter uma visão da totalidade da obra e dos dois painéis", avisa Sávia. O resultado é um misto de reprodução do traço do artista e intervenções das bordadeiras.
O colorido está mesclado nos fios de diferentes texturas e as tapeçarias garimpadas por Demóstenes servem de fundo. "Usamos muito as cores e o cubismo, que são características do Portinari", avisa Sávia. "Trabalhamos em cima da tapeçaria. O desenho está sendo seguido à risca e, em volta ,tivemos espaço para a criatividade."
No painel Guerra, Portinari inseriu figuras recorrentes, como a mãe que carrega o filho morto. A personagem é motivo também de dezenas de desenhos e foi escolhida para alguns dos bordados pelos irmãos. Uma dança de roda ganhou fundo verde e fios de seda brilhante na delicada versão em bordado. "Portinari valoriza as figuras de sua terra e nós, bordadeiras, revitalizamos o bordado, por muito tempo desvalorizado. Os dois trabalhos têm a mesma origem, que são as raízes populares brasileiras", garante Marilu.
Antes mesmo de ficarem prontos, os trabalhos já foram vendidos para um colecionador aficionado por tudo que se refere ao pintor. Agora, os irmãos buscam patrocínio para conseguir expor os trabalhos ao lado dos painéis originais. Também está nos planos de João Cândido embarcar os irmãos em um navio da Marinha para realizar oficinas para as populações ribeirinhas do rio São Francisco. A ideia faz parte de um programa já desenvolvido pelo Projeto Portinari na Amazônia. Enquanto estiverem no Brasil, as pinturas serão restauradas com apoio do BNDES, que destinou R$ 6,5 milhões para a recuperação e a exposição das obras. Guerra e Paz devem voltar à ONU em três anos, tempo previsto para o encerramento das reformas do prédio.
Com a ajuda de Chatô
» Cândido Portinari recebeu a encomenda para os painéis em 1952, do então secretário-geral Trygve Lie. O artista pretendia realizar as pinturas no próprio prédio da ONU, mas foi impedido de viajar aos Estados Unidos por conta de sua declarada ligação com o Partido Comunista. O visto foi negado e Portinari trabalhou no Rio de Janeiro, num galpão da TV Tupi cedido por Assis Chateaubriand. A obra ficou pronta em 1956 e foi exposta no Teatro Municipal antes de embarcar para Nova York, onde seria inaugurada sem a presença do artista.