Nos mapas do Google disponíveis na internet, a cidade de Henrique Dias é apenas um pontinho cortado por uma linha férrea. O ponto gráfico solto na rede mundial de computadores dá importância que a passagem dos vagões tinham para o pequeno vilarejo perdido no interior do estado de Pernambuco. É por esses dormentes que a autora do livro de contos Depois que o trem passou, Maria de Fátima Siqueira, caminha, traça histórias do sertão pernambucano, em prosa salpicada de realismo fantástico.
O texto trafega entre fatos reais acontecidos em Henrique Dias durante a infância da autora e lapsos de memória preenchidos com doses de ficção. ;Eu anotava as coisas que aconteciam em um caderno. Não eram necessariamente fatos que ocorreram comigo. Podia ser o suicídio ou o nascimento de alguém. Preenchi as lacunas com a minha imaginação;, explica Fátima. A escritora de 51 anos, que chegou a Brasília em 1971 para estudar pedagogia na Universidade de Brasília (UnB), lançará o livro hoje, no Carpe Diem (104 Sul), às 19h. Apesar da forte identidade nordestina, a autora tenta se desvencilhar de um possível excesso de localização geográfica. ;Eu não acho que o livro seja regionalista. Não o enxergo com um sotaque característico;, classifica.
Mas, é difícil não perceber a influência da paisagem ocre nas letras de quem teve de aprender a ler no meio do sertão, com poucos recursos e de uma maneira muito peculiar com a ajuda da mãe, Auta Siqueira. ;Ela nos alfabetizou lendo os rótulos dos produtos. Mas, não tinha muita coisa industrializada por lá. Um dia, encontrei um baú na casa do meu avô e pedi para olhar. Quando abri, descobri que ele estava cheio de cordéis até a tampa. Li A chegada de Lampião no céu e Pavão misterioso. Mas, tinha poucas letras ali. Eu queria mais;, relembra.
A mudança para Arco Verde, cidade vizinha, para concluir o curso normal ampliou os horizontes literários da autora. ;No colégio de freiras muitas obras não entravam. Mas, na biblioteca do Sesc, eu pude ler até Jean-Paul Sartre. Eu só tinha 15 anos;, relembra. A paixão pelos livros levou a funcionária aposentada pela Câmara dos Deputados a abrir a livraria Planeta Terra, numa das quadras comerciais da Asa Norte. A experiência só durou por três anos. ;Para que a gente conseguisse se manter seria preciso mudar para um shopping. Não era o que a gente queria. Era para ser uma livraria de quadra, com atendimento personalizado;, explicou.
Atualmente, Maria de Fátima trabalha na escrita do segundo livro. Desta vez, o universo feminino deverá tomar conta de toda a obra. ;Estou fazendo um livro de cartas. É uma mulher escrevendo para um homem. Inspirado no livro Cartas a Nelson Algren, o amante norte-americano da escritora francesa Simone de Beauvoir;, explicou.
TRECHOS DO LIVRO DEPOIS QUE O TREM PASSOU
"Ali, no vilarejo, no meio do agreste, não havia rosas. Muitas pétalas foram encontradas no dia seguinte e nos dias que se seguiram. As pessoas viam as pétalas de rosas e apenas sorriam entre si e pensavam no grande segredo que agora compartilhavam como uma família. O cheiro das rosas desapareceu depois de alguns dias, mas o novo estado de ânimo que tomou conta de todos nós permaneceu para sempre conosco, depois que o trem passou."
"Antônio do Monte, fiel empregado, apelidado pelos peões da fazenda de anjo da guarda do patrõa, fazia muitos serviços na propriedade, mas apenas para disfarçar sua verdadeira missão: impedir o Dr. Afonso de se matar; impedir que a coragem que ele tanto pedia a Deus para viver, chegasse justamente em um momento de desespero tão grande que ele usasse para dar cabo da própria vida, como aconteceu."