Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Biografia apresenta um Louis Armstrong além do mito

Livro escrito pelo jornalista Terry Teachout revela um jazzista genial e explosivo, que saiu da miséria para transformar a cultura americana

Nas velhas fotografias, Louis Armstrong aparece de sorriso aberto, vestido em ternos alinhados, com os olhos quase saltando das órbitas. Por muito tempo, essa imagem resumiu os atributos de um dos maiores jazzistas americanos. Um talento de infinita generosidade; um ;entertainer; capaz de combinar virtuosismo, arrebatamento e carisma. Um trompetista ;a serviço da alegria;, como ele próprio gostava de se apresentar. Mas, ainda que a lenda tenha um quê de verdade, ela sempre obscureceu uma personalidade não exatamente mansa: um homem contraditório e, por vezes, até explosivo. É esse retrato ampliado de Louis Daniel Armstrong ; quase sem retoques ; que vem à luz na biografia Pops ; A vida de Louis Armstrong, recém-lançada no Brasil.

Escrito pelo jornalista Terry Teachout, colunista de cultura do Wall Street Journal, o livro se beneficia de um tesouro doméstico a que poucos tiveram acesso: uma coleção de 650 fitas de áudio, gravadas pelo próprio artista. Nesse ;diário sonoro;, Armstrong (que escrevia compulsivamente sobre si próprio) registra os surtos de tristeza e revolta que preferia não compartilhar com os estranhos. ;Ele podia ser mal-humorado, duro e até mesmo rancoroso;, afirma o autor. E um tanto provocativo. ;Os brancos só agiram com decência comigo. Gostaria de poder falar o mesmo dos pretos;, observou o astro ; que, entre outras ousadias, denunciou o descaso como o presidente Eisenhower lidava com a questão racial nos Estados Unidos.

O que transparece nas 512 páginas é, acima de tudo, um músico consciente da própria fama. ;Não há um lugar aonde eu vá em que não rufem os tambores. Você tem que se levantar, fazer uma reverência, subir no palco. E se está sentado na plateia, passa horas aceitando compromissos ao longo do show. É preciso aceitá-los para manter as boas relações. E depois todos aqueles parasitas vêm para a sua mesa, e você sabe que no fim vai pagar a conta;, comentou. Era um ;showman; inseguro com os negócios ; todas as decisões importantes da carreira foram tomadas por outras pessoas. Com os concorrentes, ele podia ser cruel. ;Para ficar na banda, você não pode tocar mal, mas também não pode tocar bem demais;, resumiu Pops Foster, que o acompanhou por um longo período.

Essa imagem realista de Armstrong, no entanto, não desmerece os méritos (extraordinários) de uma arte que ainda soa como uma força da natureza. Nascido em 4 de agosto de 1901 em uma família miserável de Nova Orleans, o garoto foi abandonado pelo pai, conviveu com bandidos e prostitutas (entre elas, a própria mãe) e, aos 11 anos, foi trancado em um reformatório por ter disparado uma .38 na véspera do ano-novo. O isolamento poderia ter burilado um adolescente-problema, mas fez o contrário. Como integrante da Colored Waif`s Home, o rapaz raquítico descobriu a vocação para a música. Cresceu no mesmo compasso do jazz.

Influência
Nos anos 1950, a performance hipnotizante de Armstrong foi usada até como arma diplomática dos Estados Unidos. As turnês europeias eram transmitidas pela tevê e as participações em filmes hollywoodianos inflavam as bilheterias (caso de longas como Alta sociedade, de 1956, e Hello, Dolly, de 1969). Sem exagerar nos superlativos, no entanto, a biografia (um entre tantos livros escritos sobre o músico) esclarece que Armstrong não foi a primeira figura importante do jazz nem o primeiro grande solista do gênero. O que fez para se destacar? ;A explicação mais simples, e até certo ponto a melhor, é que ele foi a primeira importante influência do jazz. Ele mal despontara na cena musical e outros músicos ; trompetistas, saxofonistas, cantores ; já haviam começado a imitá-lo;, explica o autor.

No palco, o performer provocava atração magnética. Até Miles Davis, avesso ao humor escancarado de Armstrong, reconhecia que a história do estilo musical foi escrita em grande parte pela arte encantada do intérprete de What a wonderful world. ;É impossível alguém tocar qualquer coisa no trompete que não venha dele, nem mesmo essa coisa moderna. Não consigo me lembrar de uma única época em que o som que ele fazia com o trompete não fosse bom. Nenhuma;, afirmou. Para o jornalista Murray Kempton, a naturalidade com que o músico alterava os parâmetros do jazz era apenas uma das facetas de um artista múltiplo. ;Ele resiste a combinar em sua própria pessoa todos os homens ; o puro e o vulgar, o palhaço e o criador, o deus e o bufão;, escreveu.

Críticas
O que desnorteava os críticos musicais era a insistência de Armstrong em não criar limites entre arte e diversão. Recebeu represálias por conta desse pulso para o popular. Em texto implacável escrito para o New Yorker , nos anos 1950, Whitney Balliett resumiu o descontentamento dos intelectuais. ;Armstrong recentemente passou a oferecer em suas apresentações pouco mais que uma rodada de números de vaudeville ; caretas, piadas sem graça;, atacou. O músico respondeu como um gentleman a essas e outras alfinetadas. ;Não leio críticas;, dizia Pops ; um apelido que Armstrong usava para identificar pessoas cujos nomes esquecia.

Definia a própria arte com termos absolutamente simples. ;Quando pego o trompete, acabou. O mundo desaparece e não consigo me concentrar em mais nada a não ser nisso; É assim que vivo, esta é minha vida.; Em 6 de julho de 1971, morreu em consequência de complicações cardíacas. As últimas palavras reafirmaram a lenda: ;Eu tive o meu trompete, uma vida linda, uma família, o jazz. Agora estou completo;, teria dito. O artista, sabemos, deixou um legado incalculável ; o livro de Terry Teachout vai além: mostra que os holofotes escondiam um homem talvez ainda mais fascinante do que o mito.

Trechos do livro

"A franqueza de Armstrong era um elemento central da sua natureza. Embora amasse a Nova Orleans da sua infância, nunca a descreveu como nada além de ;extremamente segregada e preconceituosa;. Por outro lado, ele nunca caiu na tentação de tratar os músicos brancos como havia sido tratado por outros de sua cor ; ou pelos negros de cor mais clara de Nova Orleans que olhavam com desprezo para seus irmãos de cor mais escura. Seus All Stars sempre foram uma banda racialmente mista. ;Essas pessoas que criam as restrições;, disse, ;não sabem nada sobre música, não é nenhum crime pessoas de qualquer cor se reunirem para tocar;."

"Ele cantava hinos religiosos na igreja, regozijando-se com a diversidade dos sons produzidos pela "sagrada" congregação de trabalhadores negros que interpretavam ao pé da letra a exortação salmista: ;Exultai ao Senhor (;); exclamai e alegrai-vos de prazer;, louvando em voz alta, com júbilo e sem a mínima observação ao decoro dos seus irmãos mais abastados: ;Acho que foi assim que adquiri minha técnica de canto; Toda a Congregação chorava ; cantando feito loucos e produzindo um som tão lindo;. Às quartas, ele brincava de esconde-esconde com as crianças brancas pobres da vizinhança e ajudava a entregar as roupas que a avó lavava, ganhando um níquel por viagem."