A fala pausada, quase sussurrada, pode provocar a impressão de que Pedro Costa escolhe palavras brandas. É uma aparência enganosa. A relação que o diretor de 51 anos mantém com o cinema remete à época em que este lisboeta grisalho atuava como músico, no turbilhão do movimento punk. O discurso logo se revela tão franco e pontiagudo quanto um refrão do Sex Pistols, uma das bandas que ouvia no auge da cinefilia, enquanto atuava como músico e devorava filmes de autores como John Ford, Yasujiro Ozu e Jean-Luc Godard.
Hoje, Costa aplica o inconformismo para registrar o cotidiano de miseráveis, de imigrantes ; especialmente dos moradores de Fontainhas, em Lisboa. Desde No quarto de Vanda (2000), premiado em Cannes, filma com uma mesma trupe (de não-atores) e confunde radicalmente os limites entre documentário e ficção. Os planos longos e silenciosos podem provocar desconforto ; mas assistir a um filme, para Costa, também exige trabalho.
Em cartaz no CCBB com a mostra O cinema de Pedro Costa, o diretor de Juventude em marcha (de 2006, exibido na competição de Cannes) não esconde a insatisfação com o modelo industrial propagado por Hollywood. Em visita a Brasília, conversou com o Correio sobre um cinema difuso, esculpido pela convivência ; obras que apontam para uma forma econômica, direta e mais verdadeira de projetar imagens em grandes telas. Sempre na contracorrente. "O mundo do cinema é muito corrompido. Não recomendo a ninguém", resume.
O senhor costuma afirmar que o seu cinema é feito de trabalho e resistência. Como essas duas forças atuam nos filmes?
Quando comecei a filmar com as mesmas pessoas, no mesmo local, ficou mais fácil pensar no aspecto prático do cinema. Parei de quebrar a cabeça com problemas estéticos e questões que talvez não tenham tanta importância. Antes, eu pensava de outra forma: imaginava o filme no meu quarto, escrevia num papel e depois aplicava aquilo que estava escrito. Era sempre eu, eu, eu. Nessa nova fórmula que encontrei, parece-me que estou próximo de um ofício. Cinema ; e a arte, em geral ; é uma coisa muito fechada sobre si própria e, por vezes, não dá a impressão de ser um trabalho. Costumo dizer que agora o que produzo é trabalho, não é arte. Isso tem a ver, obviamente, com resistência. A feitura dos meus filmes resiste ao padrão normal, que é sempre muito inflacionado. No cinema, há muito desperdício, muita coisa supérflua, muito trabalho em vão.
O senhor se considera autor dos seus filmes?
Uma das críticas que eu fazia a mim próprio é que, no filme, eu via mais de mim do que das pessoas que eu queria filmar. Isso acontece com muitos cineastas e artistas. Agora vou na direção contrária. Não é propriamente um apagamento, em que a coisa resulta anônima. Mas, quem sabe? Tenho muita admiração por um cinema norte-americano clássico dos anos 1940, 1950. Era um cinema B, de segunda linha. Muito concentrado, muito econômico. Aprecio os cineastas-autores. Mas sinto que, para mim, a direção mais produtiva é tentar chegar a qualquer coisa mais difusa, coletiva. Não saber quem inventou determinado diálogo; É uma mistura. Além disso, é uma forma de segurança. Meus filmes são muito ancorados na realidade. Sinto que, se filmar de outra forma, posso perder o pé. Posso passar uma espécie de fronteira que não é a realidade, e sim uma invenção.
No trabalho e na convivência com os atores, como o senhor descobre que tem um filme pronto?
Essa questão de acabar, de chegar ao fim, é mais complicada. Nos últimos filmes que fizemos, não há roteiro. Há um ponto de partida, uma colagem de várias coisas, uma ideia. Depois é uma espécie de cavalgada com contribuições de várias partes. Normalmente, as coisas se casam bem. Mas, como não há roteiro, as histórias são intermináveis. É muito vida real, e isso envolve a própria saúde das pessoas envolvidas no filme. Estamos começando um filme e temos um problema porque o ator, Ventura, está muito doente de uma maneira que, nos parece, não é passageira. A doença vai se arrastar. Ele tem menos energia, tem que ficar sentado. Isso vai determinar os filmes que vamos fazer. Pelo simples fato de que ele não pode ficar em pé. Ele será menos ativo, ficará mais deitado. Isso é uma mudança no tom. No fundo, são os limites que fazem os filmes. Eu gosto desses limites. Até preciso deles para não delirar demais.
O senhor sente que acompanhará os seus atores por um bom tempo?
Creio que sim. Por enquanto, não vejo razão para mudar de rumo. No princípio, não pensei que seria uma relação tão longa, com tantos projetos. Eu achava que só havia um Ventura, uma Vanda, uma pessoa especial. Hoje já não existe essa ideia. Todas as pessoas podem fazer um filme, todas as pessoas podem participar de um filme. Não há somente uma história para contar. Para que mudar? Eu não ficaria satisfeito fazendo filmes estando num hotel e tendo um assistente para me buscar de manhã e me levar para o set, onde os atores já estão preparados. Me sentiria um impostor. Tudo isso é muito artificial. O trabalho nesse sistema não me convence. Há muita referência, muita hierarquia, muita coisa que me impede de filmar como eu gosto. Nos filmes normais existem muitas perguntas: "Onde você quer a câmera? O que você quer comer hoje?" Não gosto dessas decisões.
Para garantir essa liberdade, usar câmeras digitais foi determinante?
Foi uma sorte. Começou a acontecer no momento em que eu queria mudar algumas coisas. É um material muito ligeiro, com um lado amador. Há um lado muito prático. No bairro em que filmamos, ao longo dos anos, as pessoas começaram a comprar câmeras iguais às minhas. Eles têm o equipamento que eu tenho e que cabe na minha bolsa. Portanto, não é nada de estranho estar filmando algo pelas ruas e passar um outro com uma câmera e dizer: "Venha filmar o casamento da minha filha, você que sabe como fazer". E eu vou. Eu sirvo para tudo. Casamento, batizado;
O senhor usaria em seus filmes as imagens produzidas pelas pessoas que vivem no bairro?
Não. Já aconteceram workshops e oficinas com os mais jovens. Só para abrir o apetite pelo cinema. Acredito que talvez entre os pequenos, os mais jovens, ainda haja esperança de um olhar menos corrompido. Mas com os outros é muito difícil. As pessoas pegam numa câmera e imitam coisas da tevê Globo, sobretudo coisas da televisão. Se eu usasse imagens como essas, não seria bom para mim nem para eles. Eu me sentiria um pouco hipócrita por que essas imagens não me serviriam.
Seu cinema seria uma reação do digital para produzir imagens muitas vezes frenéticas?
Tudo isso tem a ver com a minha formação, que é ligada a um cinema muito clássico. O cinema que acho mais forte continua sendo o dos primeiros anos. O cinema mudo, que vai de 1915 a 1930. São filmes de uma invenção extraordinária em todos os níveis. Não falo só da imagem, da plástica, mas dos sentimentos. É muito fácil provar isso. É só exibir um filme de Murnau ou de Fritz Lang para um grupo de jovens de qualquer lugar do mundo. Com certeza, eles ficarão perturbados. Não por achar uma chatice. É que é muito complicado para eles. É o contrário dessa rapidez. Os sentimentos são exacerbados. É como se fosse outro mundo. Além disso, um plano fixo pode ser mais violento e veloz do que uma câmera que não para de se mexer. Luto um pouco e resisto contra a inflação do cinema. O mais, mais, mais. É um reflexo da nossa sociedade. Por que não parar um pouco? Tudo tem um fim. Nós temos um fim. Nosso corpo tem um fim. As coisas têm limites. Eu sou por um cinema que respeita seus limites.
Do cinema comercial, se cobra filmes que agradem ao público. O cinema está muito submisso às vontades do espectador?
Fazer algo para que uma pessoa goste é muito pretensioso. Não sei. Tudo isso tem a ver com resultados, dinheiro. Acho que as pessoas têm muito medo. Esses filmes me angustiam um pouco. Há filmes que são uma contradição completa com a realidade. Não digo que são histórias em cor-de-rosa. Por vezes, pensam ser filmes sobre a realidade. Mas são contraditórios. É tudo medo. Desse mundo do cinema que eu conheço um pouco, posso dizer que não há muita coisa verdadeira. É um mundo muito corrompido. Não aconselho a ninguém.
O seu cinema não vê limites entre ficção e documentário. Existe uma resistência no cinema mundial em permitir que os gêneros se misturem?
Está cada vez pior, eu acho. Acho que isso vem até das escolas de cinemas, mesmo as respeitadas e sérias. São elas que fazem uma espécie de separação. É como dizer: "Atenção, essas coisas não se tocam. Há regras diferentes para cada gênero". É assustador. Um dia, por acaso, pude acompanhar uma filmagem de alunos da Escola de Cinema de Lisboa. A certa altura, um aluno estava enrolando um cabo e outro garoto veio ter com ele: "Não faça isso. O senhor professor disse que o diretor do filme nunca pode arrumar os cabos". Eu fiquei tão escandalizado. Nós sentimos o que é um documentário e o que é uma ficção. O que é interessante é que as duas coisas se confundam. Em qualquer realidade há ficção, há delírios. Em qualquer ficção há um fundo de realidade também. Eu nem penso muito nisso. Me limito a avançar com os filmes.
Em festivais de cinema, é comum essa separação entre os gêneros.
Em alguns festivais, me parece que as verdadeiras questões são deixadas para trás. Um dos festivais, um brasileiro, se chama É Tudo Verdade. Há outro, na França, chamado Cinema do Real, que é uma coisa inacreditável de tão estúpida. Separar os gêneros é a única questão que não me interessa quando faço um filme.
Neste momento, existe uma discussão aqui mesmo, em Brasília, sobre dividir o nosso festival de cinema brasileiro entre filmes de ficção e documentários;
Isso não deveria acontecer. Nos festivais, não deveria existir nem a divisão entre curtas e longas-metragens. Daqui a pouco teremos festivais de anões. Já existe o de direitos humanos, direitos dos cães...
O cinema português é objeto de crescente curiosidade e interesse em festivais internacionais. Existe um movimento de cineastas são casos isolados?
O cinema português é um caso bastante singular. É um país estranho, muito pequeno e periférico na Europa, sem muita tradição de cinema. Por causa da situação política, nós vivemos quase todo o século 20 sob uma ditadura. Quando eu comecei, existiam três ou quatro cineastas antes de mim. Cada pessoa era quase uma ilha. E todos com uma personalidade muito forte. O cinema comercial em Portugal sempre foi absolutamente nulo. Sempre foi cinema de autor e difícil que conquistou alguma coisa. O Manuel de Oliveira foi muito importante e continua a ser. Curiosamente, sempre houve um número de 10 a 15 cineastas muito interessantes. Por vezes melhor, por vezes pior. É um país muito ligado a poesia escrita. Os poetas e a poesia sempre tiveram muito respeito em Portugal. Um poeta em Portugal não é um doido. Tem a ver com isso: admitir que quem faz cinema também pode ser um poeta. Mesmo que não renda dinheiro. Não sei se é isso.
Nos seus filmes, o apuro estético chama a atenção. Como você chega a esse resultado com pouco dinheiro?
Sinceramente, passo muito mais tempo vivendo o filme do que em grandes pensamentos estéticos. É um processo diferente de uma filmagem normal. Os dias em que não se filma são tão importantes quanto os dias em que se filma. Quando alguém está doente, por exemplo, não podemos filmar. Então fazemos outra coisa que pode ser útil: conversamos, vamos passear; Depois, é tudo uma questão de observação. Não há um segredo estético. Somos animais de grandes rotinas. Roberto Rossellini (cineasta italiano) dizia uma coisa engraçada que não deixa de ser verdadeira: é muito fácil fazer um filme; é só chegar num determinado lugar e ver como as pessoas comem, se vestem, saem para trabalhar, qual é a língua que falam, as diferenças das pronúncias. Você junta tudo isso e o filme está pronto.
O CINEMA DE PEDRO COSTA
Até 26 de setembro, no Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2, Lt. 22; 3310-7087). Hoje (sábado), às 18h, O sangue (Portugal, 1989, 95min; não recomendado para menores de 16 anos), e às 20h, Ne change rien (Portugal/França, 2009, 98min; não recomendado para menores de 12 anos). Ingressos: R$ 4 e R$ 2 (meia), para sessões em película.