Durante muito tempo, a cena mais comum nas casas brasileiras era esta: toda a família, adultos e crianças, reunida em torno de um rádio. Nas salas, ouviam música, ;assistiam; novelas e, mais do que isso, sonhavam com o mundo desses artistas ; sobretudo das cantoras. Foi nesse cenário que o escritor Ronaldo Conde Aguiar se criou. Autor do livro Almanaque da Rádio Nacional, ele retorna às reminiscências da infância e da adolescência em As divas do Rádio Nacional, recém-lançado pela editora Casa da Palavra.
Na obra, o autor reúne biografias de 14 cantoras que fizeram a alegria dos ouvintes da Rádio Nacional. De Dolores Duran a Inezita Barroso, passando por Zezé Gonzaga, Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, entre outras. ;Não pude, como queria, homenagear tantas outras cantoras brasileiras. Por questões de espaço e tempo, fui obrigado a concentrar meus esforços em apenas 14 estrelas do nosso cancioneiro;, justifica Ronaldo na introdução do livro.
Em cada capítulo, as histórias das cantoras têm como denominador comum o fato de terem participado do Rádio Nacional. Mas as vidas, as ilusões, os amores, os sucessos e os fracassos são particularidades de cada uma. E tudo está em As divas do Rádio Nacional. O leitor descobre, por exemplo, que a melancolia presente nas canções interpretadas por Dolores Duran não atingiam a vida da cantora. Segundo Ronaldo conta no livro, ela ;era uma mulher bem-humorada, comunicativa e adorava um papo descontraído.;
Já Emilinha Borba, de sucessos como Canção de Dalila e Chiquita bacana, mantinha uma relação quase de intimidade com as fãs. Fazia questão de trocar correspondências com elas. Alguns fragmentos dessas cartas, inclusive, estão publicados nos livros. Todas as cantoras têm a discografia selecionada no fim do capítulo, assim como curiosidades da época e trechos de reportagens de vários veículos. O livro ainda acompanha um CD com uma faixa de cada uma das 14 intérpretes.
No capítulo sobre as irmãs Linda e Dircinha Batista, o que mais choca são os últimos anos de vida das artistas. As duas passaram seus dias enfurnadas num apartamento em Copacabana. Segundo o autor, o imóvel onde viviam após anos de fama, dinheiro e joias ;estava semidestruído; tacos estavam soltos; as paredes rabiscadas, e descascadas; janelas quebradas; móveis arrebentados;.
Resgate cultural
O trabalho, então, foi uma maneira que o autor encontrou para apresentar essas artistas a uma geração que desconhece ou pouco se interessa pela época. ;Procurei registrar e dar aos leitores a ideia de uma época extremamente rica do ponto de vista cultural. Como professor de história da cultura brasileira, sempre disse aos meus alunos: ;Vocês não precisam gostar, mas devem conhecer;;.
Surgida na primeira metade do século 20, a Rádio Nacional era um dos símbolos do que ficou conhecido como Era de Ouro. ;A Nacional era o mais importante meio de diversão das pessoas. Tínhamos os nossos programas favoritos. Tínhamos nossos cantores favoritos. Mas a Era de Ouro não foi só a Nacional: foi ainda o tempo das famosas boates de Copacabana, do teatro de revista, dos filmes da Atlântida;, lembra o autor.
Quatro perguntas - Ronaldo Conde Aguiar
Como e quando surgiu a ideia de lançar o livro?
Após ter escrito Almanaque da Rádio Nacional, percebi que o assunto não estava inteiramente esgotado. A Rádio Nacional foi aquele importante veículo de comunicação ; eu diria, de transmissão de cultura ; porque possuía um ;cast; da melhor qualidade. Tinha os melhores e mais populares cantores e cantoras, grandes atrizes e atores, além de importantes produtores, animadores, músicos. Então, eu percebi que tinha que dedicar atenção especial aos chamados ;astros e estrelas; da emissora. O livro é a minha homenagem às cantoras que, em épocas diferentes, fizeram da Nacional o que ela foi. E a Nacional foi o que foi porque tinha os melhores.
Qual método utilizado para selecionar as damas retratadas na obra?
Procurei utilizar dois critérios: a representatividade e a disponibilidade de informações. Claro, a escolha de figuras como Emilinha Borba, Marlene, Dalva, Elizete, facilitou porque há grande disponibilidade de material sobre elas. Outras, porém, que eu gostaria imensamente de incluir, não tive como obter informações que me permitissem ir além do que tinha escrito no Almanaque da Rádio Nacional, ou seja, pequenos verbetes.
Durante o processo de pesquisa e entrevistas para o livro, o que mais lhe deixou chocado?
O desconhecimento que os jovens demonstraram ter sobre a Era de Ouro. Bem verdade que a culpa não é deles, mas da ideia, muito presente na sociedade brasileira, de que o passado é apenas o que ficou para trás. Os brasileiros não entendem que o presente é o resultado de um acúmulo de conhecimentos vindos do passado. A ideia de acréscimos culturais não passa pela cabeça do brasileiro médio.
E o que mais lhe agradou?
Do ponto de vista operacional, a pesquisa e a escrita, duas coisas que faço com imenso prazer, apesar da canseira. Do ponto de vista emocional, a certeza de estar contribuindo para a divulgação de notáveis cantoras, grandes intérpretes.
Trecho do livro As damas do Rádio Nacional. Capítulo sobre a cantora Isaurinha Garcia
"Todos falam da Leila Diniz como exemplo de mulher à frente de seu tempo. Exemplo de mulher que jamais se deixou pautar pelos preconceitos de seu tempo. Mulher que vivia na contramão dos falsos pudores, mulher que acreditava na alegria de viver, que sempre foi leal aos próprios valores. Foi amada e odiada ; e secretamente invejada por quem não tinha coragem de se libertar do moralismo rasteiro. Quem assim fala de Leila Diniz descreve um ser humano excepcional.
Mas, antes dela, Isaurinha foi uma pioneira no comportamento ousado, dizendo palavrões com naturalidade, bebendo e fumando, amando pelo prazer de amar e de querer bem, pela sensação gostosa de ser desejada. Suas frases terminavam, em geral, com o tradicional "ôrra" do Brás ; que, às vezes, vinha com um acréscimo: "Ôrra, meu"
Um dia, Isaurinha literalmente saiu no braço com Dalva de Oliveira, que, de quebra, ainda acertou a cabeça do marido, Herivelto Martins, com um cinzeiro. A história dessa briga é emblemática para todos os envolvidos.
Isaurinha, sempre que vinha ao Rio, hospedava-se na casa de Dalva e Herivelto, na Urca. Isaura e Dalva eram amigas ; e a paulistana adorava o ambiente descontraído da casa da amiga, onde à noite os amigos compareciam, havia sempre um violão, comes e bebes fartos. Isaura adorava cantar ; acompanhada ao violão por um sempre simpático e charmoso Herivelton."