;Kreyon Bondye pa gen g;m;. O provérbio popular haitiano serviu de título para O lápis do bom Deus não tem borracha, primeiro livro de Louis-Philippe Dalembert editado em português. Ele nasceu e viveu em Porto Príncipe, mas tem andado pelo mundo todo desde que deixou o país, em 1986, para obter o doutorado em literatura comparada em Sorbonne, Paris. Antes, trabalhou como jornalista.
De Bel-Air, bairro onde passou os primeiros anos da infância, Dalembert saiu para para visitar a África, a Europa e o Brasil. O lápis do bom Deus narra a jornada de um exilado para Porto Pinto, cidade de cotidiano, gente e cultura parecidas com as que identificam a real capital do Haiti. ;Eu saí de lá, desse pequeno pedaço de ilha, de sua capital, Porto Príncipe, da história desse país. Onde eu for, faça o que fizer, ele encontrará ressonâncias no meu corpo, na minha maneira de fazer as coisas, no meu sotaque;, admite o autor.
O andarilho Dalembert escreveu a obra em Roma, em 1996, um ano e meio antes de seu retorno ao Haiti. Mas a distância física em nada atrapalhou a construção do romance. O personagem principal, um homem sem nome, reencontra a sua terra de origem, mas não reconhece nada do que vê, como se as lembranças tivessem sido plantadas em sua mente. A paisagem está drasticamente modificada: o bairro, antes dominado por árvores, mais parece um deserto; a igreja fora incendiada. E o principal: ;Toda a gente conhecida sumira de circulação;. A viagem só não causou imediata repugnância no homem porque restava uma imagem que ele ainda constatava como verdadeira: a que registrara as andanças do engraxate Faustino. A perseguição ao passado está apenas começando.
Esse amargo sentimento de perceber que a memória pode ser refém do tempo é universal, segundo o escritor. ;Ao escrever este romance, eu pensava mais na impossibilidade de voltar no tempo, de reabitar a infância, esse outro país de si mesmo. Nesse sentido, O lápis do bom Deus é universal, próximo da realidade, da experiência de qualquer ser humano, ele está ligado à própria fragilidade da condição humana. Um brasileiro, um japonês ou um senegalês pode se encontrar no livro tanto quanto haitiano. Em todo caso, é o que espero.;, analisa.
Faustino é a figura central do livro, mas Dalembert diz ter dedicado o livro às mulheres com as quais cresceu e foi criado ; aliás, não só esse, mas vários escritos seus. De fato, Ponte-Napoleão, a avó do menino que retornou para um lugar ao mesmo tempo familiar e estranho, é descrita quase como uma matriarca da região, uma mulher que aprendeu a combater as dificuldades com esperança e um forte senso de sobrevivência. ;A morte de meu pai alguns meses antes de meu nascimento me permitiu crescer em um universo feminino, no meio de mulheres amantes e exigentes. Sem elas, que sempre me empurraram para o estudo e a leitura, eu não seria o homem nem o escritor que sou hoje;, acrescenta o escritor e poeta. O lápis do bom Deus não tem borracha é um convite para se visitar um Haiti um pouco diferente do visto nos noticiários.
Trecho
"É bem dali, da solidão e desse vetusto Peugeot 304, que o garotinho observa o mundo. Não aquele que fervilha seu salve-se-como-puder à frente do automóvel. Esse aí o garoto não consegue enxergar. Para poder vê-lo, seria preciso um ou dois perpianhos por baixo das nádegas, mas o peso terminaria por desconjuntar o banco. Sem falar da rugosidade dessas pedras sob o traseiro! Tentar outra coisa? Em pé, por exemplo. Dessa forma, sem dúvida conseguiria, com a vantagem extra de poder pisar sem dó no acelerador. Mas onde é que já se viu dirigir um carro em tal postura? O garotinho, então, vigia a própria retaguarda. Graças ao retrovisor virado para o banco do motorista. Nas férias e feriados, ele passa dias inteiros com os olhos cravados nessa fatiade espelho, por onde observa fatos miúdos e gestos da fauna algo especial que se aglutina diante da varanda de sua avó."
"Durante o dia, Faustino, como todos os demais, ocupa-se de suas atividades de engraxate; quando preciso, dá uma mãozinha na construção dessa ou daquela casa. Noite feita, dorme no chão do quintal de Ponte-Napoleão, numa convulsa coabitação com as demais cotovias que também estilhaçaram o bico no espelho polido da cidade grande. Mas é ao anoitecer, entre as atividades, do dia e a hora do sono, que o yaguanês encontra sua verdadeira estatura, deslizando por baixo da pele desse imperador da segunda metade do século XIX, governante que reinou pela baioneta sobre o país salbundense, em uma orgia de sangue, fastos e musselina, e que era com certeza o autor do ditado: "baionetas são de aço; constituições, de papel." Tal é o destino de Salbunda, diria você ; e com toda razão ;, desde o Grão-Duque de Antanho, com generais de opereta sucedendo a governantes laranjas, e vice-versa. Com certeza, é outra essa música, e aqui não é o lugar para cantá-la"
"O homem retirou-se na ponta dos pés, subiu novamente no carro, sem nada perguntar a ninguém. O destino o precedera e confiscara sua memória; E se, para o engraxate, tudo tivesse começado nesse povoado debruçado sobre o mar? Nessa igrejinha em tijolos à vista, uma das raras construções sólidas da aldeia, na qual, em tempos de ciclone, deveria se refugiar tudo o que vilarejo contasse como vivo? Quem sabe, essa igreja tivesse sido talvez testemunha do batismo de Faustino, de sua primeira comunhão, de seu casamento. E sobretudo o mar ; que não sabe guardar segredo, dizem os salbundenses ; teria com certeza muitas histórias para lhe contar; Os pneus do carro morderam avidamente a trilha de terra, os pés do motorista pisavam fundo no pedal. Era o medo que lhe embrulhava o estômago, ou a raiva por ter sido empulhado pela providência? Ao cabo de alguns quilômetros, o velho jipe expediu uma tosse seca que o arrancou de suas cogitações. O homem baixou pés ao chão e escarafunchou sob o capô. Instantes depois, o carro pegou em meia volta de chave. Vraaaam! Bi-bi! Mal percorreu quinhentos metros, já novamente afogou."