No centenário de morte do russo Léon Tolstói, a íntegra da adaptação televisiva da mais consagrada obra dele, Guerra e paz (concebida por sete anos), chega ao DVD numa versão que não foi muito badalada, à época do lançamento (há três anos), mas que uniu potentes forças de coprodução entre Itália, França, Alemanha, Polônia e Rússia. O diretor romeno Robert Dornhelm conta com a excelência técnica de Fabrizio Lucci (fotografia) e do compositor polonês Jan A. P.
Kaczmarek (das trilhas de Ao entardecer e O visitante), a exemplo da mão de obra disposta para a obra de King Vidor, em 1956, única adaptação de respeito fora do território soviético em parelha, aliás, ao clássico do cineasta Sergei Bondarchuk. Este último levado às telas com mais de 400 minutos e foi ganhador do Oscar de filme estrangeiro de 1968.
Com quase 600 personagens e ensinamentos filosóficos para os tipos aristocráticos que habitam a Rússia prestes a ser invadida pelo poderio napoleônico, Guerra e paz é colossal no papel. Na tevê, apega-se à gama de identificação possível com infinitos personagens, nunca jogados desnecessariamente no enredo. Até o final, um tanto apressado, é possível testemunhar, ao lado do aprendizado do ilegítimo filho da nobreza Pierre Bezukhov (Alexander Beyer, de Adeus, Lênin), uma trama de amadurecimento (expresso na romântica Natasha Rostova, papel de Clémence Poésy, atriz da franquia Harry Potter), assentada em sólidos valores familiares e que ainda revela o arrojo na integração de um povo devastado, que se recobra da destruição bélica, no século 19.
Para além do caráter exageradamente introdutório (em partes do primeiro capítulo) e da imponência dos salões apinhados de casais elegantes, como Hél;ne Kuragin e Pierre ou Lise e Andrei Bolkonsky (o casado pretendente de Natasha, interpretado por Alessio Boni, de O melhor da juventude), a minissérie segue por mais dois capítulos (a metade do total de quase sete horas), num ritmo que projeta Nikolai (o endividado primogênito dos Rostova), voluntário das batalhas; as artimanhas russas e austríacas contra o poderio francês e o contraste entre o sábio bonachão general Kutuzov (cioso dos 500 mil adversários) e a insípida retratação de Napoleão, a cargo do francês Scali Delpeyrat.
Hábil na coordenação das cenas de tocaia e de corpo a corpo, na linha dos filmes anteriores que empregaram em cena mais de 20 mil figurantes e apelaram para objetos de 40 museus russos, o diretor Robert Dornhelm reveste a minissérie Guerra & paz com o desapego propalado pelo mesmo autor de Anna Karenina, que teve contato com a lida no Exército, durante a Guerra da Crimeia. Outro ponto respeitado, saído do livro, a caótica interferência das coincidências e do determinado destino atravessa a vida do solene e educado Pierre, que, pelas exigências dos acontecimentos históricos, chega à condição de revolucionário incendiário.
Entre prosaicas descrições de romances (o melhor exemplo é o esmorecimento do amor de Sonia e Nikolai, por razões sociais), Guerra & paz tira proveito da narrativa abundante em adultérios. De cartas anônimas a inusitados duelos com armas, passando por calculados artifícios de perversão, muito contraria a crença de Natasha de que ;o amor é cada um de nós prontos para o esplendor;. No tabuleiro de libertinagens, o personagem Anatole (numa perfeita caracterização do alemão Ken Duken) é hors-concours, enquanto, na resistência pueril de Guerra & paz, o distinto Andrei pavimenta um enobrecimento, partindo da inicial ideia de que ;perdoar; seja ;uma virtude de mulher` até a conclusão da falta de consistência que engloba o sentimento de ódio.