A mídia é feita de imagens. A literatura, de palavras. O número de suportes é evidentemente desigual: a seu favor, a imagem se apresenta por meio das telas de celulares, televisores, cinemas e incontáveis aparelhos eletrônicos, e ainda conta com a ajuda de impecáveis estímulos sonoros. Já a palavra literária, por um punhado de páginas de papel. A mídia ocupou o lugar que antes pertencia à literatura. E isso pode não ser tão ruim assim para os escritores contemporâneos, sejam eles iniciantes ou experientes. É o que defende o jornalista e professor da UnB Sérgio de Sá no livro A reinvenção do escritor: literatura e mass media, resultado da tese de doutorado em estudos literários defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
;O escritor como perdedor não tem que dar satisfação. Essa derrota pode ser vista como vitória. Por ser perdedor, está livre para fazer o que quiser. Ou você diz não à cultura de mídia e se fecha ou dialoga com essa cultura de maneira inteligente. Se deixar aderir totalmente não me parece uma alternativa válida;, explica o autor. O lançamento será hoje, às 19h, no restaurante Carpe Diem (104 Sul).
Em vez de tratar os meios de comunicação de massa (os mass media) como inimigos da escrita (ou mesmo da arte), Sérgio de Sá prefere recorrer à literatura e a pensadores da comunicação em busca de respostas ou hipóteses para o debate. Em especial, a produção contemporânea argentina e brasileira. Escritores como Bernardo Carvalho e Sérgio Sant;Anna e o argentino Ricardo Piglia discutem o diálogo da literatura com a mídia por meio da ficção.
São livros em que o narrador ou o personagem se encontram em dúvida entre fazer parte do sistema midiático ou viver fora dele, desenvolvendo novas formas de escrever sem medo de ser esquecido pelo público. Sá classifica esse sujeito como personagem-escritor. ;É sintomático que haja tanto personagem na literatura brasileira e argentina que seja escritor. Tem aí um incômodo do escritor de ficção que o leva a se autoficcionalizar, discutir o seu próprio papel nessa sociedade. Ao fazer isso, está mostrando alternativas para vermos o mundo de outras formas. É uma defesa da literatura, no fim das contas;, afirma.
Pertencer ao sistema pode significar repetir o que a televisão ou o best-seller, por exemplo, já fazem, em narrativas que elaboram imagens envolventes, mas não mobilizam a imaginação. A marginalidade, por sua vez, talvez signifique um afastamento irracional e paranoico. O ideal, segundo o jornalista, é que o escritor contemporâneo se mantenha em equilíbrio. ;É um paradoxo. Não adianta ficar experimentando e falar com ninguém. Tem que encontrar uma chave que apresenta as armas literárias. É um caminho ambíguo: o escritor não pode abandonar a ideia de se comunicar com o público, nem fazer adesão completa;, comenta.
Percepção
No arsenal à disposição dos livros, os escritores se valem de um artefato que nenhum outro espetáculo midiático pode oferecer: um discurso que alimenta, com alguns parágrafos, a poderosa imaginação humana. ;O grande desafio da literatura é fazer a gente imaginar coisas que já não tenham sido fornecidas pelos meios de comunicação. A força dela reside muito nisso, na possibilidade de oferecer uma percepção diferente da que você tem dos meios;, analisa.
O texto de Sá foi concebido na universidade, o que não torna o livro um enigma acadêmico de difícil leitura. A escrita mais se parece como um grande ensaio sobre mídia e literatura latino-americana. E, apesar da formação de jornalista, o argumento do autor se posiciona ao lado da ficção. ;Em contato com a literatura, o leitor pode se individualizar, se particularizar, e passar a ser um crítico mais contumaz dos próprios meios. O leitor lê essas coisas do escritor que se encena, e o leitor se coloca no papel do escritor, em conflito constante com a realidade. A literatura dá às pessoas a possibilidade de pensar por elas mesmas;, destaca. Por fim, a ansiedade do personagem-escritor contemporâneo, quando está diante de uma folha em branco e duvida de si mesmo, talvez seja a mesma do leitor que, a propósito da ausência dos livros, encontra-se atormentado pelo excesso de informação. Sérgio de Sá propõe uma reinvenção do escritor, que, de alguma maneira, é também uma reinvenção do leitor.
Leia trechos
"Mundo dos mass media. Ele está aí, diante de nossos olhos, enquanto a literatura busca alternativas para não desaparecer. Do seu canto, através dos olhos do personagem-escritor, ela perscruta o monstro-media.
Na sociedade dos meios de comunicação de massa, o pensamento vê-se atrelado à imagem. Quantas vezes não relacionamos o que nossos olhos veem com imagens já vistas. No cinema e na televisão, principalmente. E estamos sempre pedindo a esse mundo fora das telas que se pareça com aquele outro. Que tenha o mesmo glamour, charme, apelo.
A presença da mídia é avassaladora. A experiência, não poderia ser diferente, atinge também o intelectual. Muitos assuntos das conversas cotidianas nascem, resvalam ou acabam nela. A reportagem, desempenho de determinado ator, o jogo de futebol, o videoclipe. É a "sociabilidade" sendo conformada. O meio deixa de ser simplesmente a mensagem. O conteúdo cumpre seu papel. Não houve destruição de relações humanas. Conversamos sobre a novela, debatemos o último filme. A tecnologia impôs novas formas de socialização. Não estamos cara a cara, mas comunicamos, comunicamos, comunicamos".
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"Escrever na América Latina é também tomada de posição. Para o escritor argentino Ricardo Piglia, haveria três possibilidades para o romance na contemporaneidade, a partir de decisão autoral. A primeira delas é a recusa total à cultura de massa, dizer "não", adotar uma estética da negatividade, porque é necessário evidenciar os mecanismos de manipulação e de "transparência linguística" que os mass media impõem e exigem. Na Argentina, vale frisar rapidamente, essa não-negociação é menos rara entre jovens escritores do que no Brasil, mesmo que eles já tenham sido criados (educados) dentro de uma cultura mais mediática do que escolar.
A segunda saída romanesca é a "estratégia pós-moderna", qual seja, apagar no texto as marcas limítrofes entre alta e baixa cultura. Por esse caminho, tenta-se chegar ao grande público leitor, retirado da literatura pela mídia. Convoca-se o popular para dialogar com o erudito, retrabalham-se os formatos mais difundidos pelos meios, para daí o escritor extrair um caldo equilibrado. Se o exemplo argentino da primeira hipótese é Juan José Saer, o trono neste último caso vai para Manuel Puig, ambos citados por Piglia. No Brasil, um romance como Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, talvez nos permita uma aproximação a Saer. Para a segunda opção, inevitável pensar na obra de Rubem Fonseca.
O terceiro movimento é o que traz material não-ficcional para a literatura. Os melhores exemplos seriam os textos que vieram à tona durante as ditaduras militares ou logo depois delas. Foi a forma (ou foram as formas) que o escritor encontrou para burlar a censura: o romance-reportagem e o romance-testemunho. Na Argentina, Rodolfo Walsh. No Brasil, o texto mais comentado entre os examinadores da questão ficou sendo O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira."