No começo, havia um. O outro apareceu depois. Ou eram dois e tornaram-se um? Bem, de qualquer forma, ele era bom. Ou não? A dualidade é um dos temas recorrentes na vida e na arte e foi trabalhando em cima desse conceito que a atriz e professora de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB) Alice Stefânia, 38 anos, e o ator Fernando Santana, 44, resolveram adaptar dois contos e torná-los uma peça.
Duplos nasceu de uma livre interpretação de A Mulher-gorila e Ainda é tarde, ambos do jornalista e escritor José Rezende Júnior. No palco, os dois atores encenam os dois contos ao mesmo tempo, criando um diálogo entre os temas, mas não entre os artistas. Em A Mulher-gorila, a atriz de um parque de diversões seduz um rapaz enquanto conversa com ele - só ela fala, e ele se vê atraído não pela sensualidade da mulher, mas pelo momento "gorila" da moça. Já a ficção Ainda é tarde aborda o trancamento de um homem em si mesmo, e em sua casa, em sua psiquê, amedrontado com tudo o que há do lado de fora.
Transformar um livro em qualquer outra coisa - seja peça teatral ou filme - nem sempre satisfaz o autor da obra original. Vide as constantes críticas que escritores fazem em relação aos roteiros originados de suas obras. O autor dos contos que inspiraram Duplos, José Rezende Jr. diz estar preparado para assistir a Mulher-gorila no teatro, ainda que não tenha tido qualquer influência durante a conversão do texto.
"Fiquei feliz com a proposta de levar os contos ao palco. A reeleitura não foi opção minha; eles queriam ter essa liberdade. Assisti a uma parte do ensaio e até achei que está bem fiel. Mas se estivesse diferente também não seria um choque. É normal ocorrerem mudanças durante a conversão de linguagem", disse o escritor.
Para expressar a tônica de Duplos, que aborda a ambivalência do caráter humano, o texto exacerba contrastes e trafega pelo trágico e cômico, delimitando diferenças e similitudes. O cenário, segundo José Rezende Jr., é um espetáculo à parte - de muita beleza e também segue a proposta da peça: inicialmente começa único, depois se divide em dois espaços.
O espetáculo é uma mostra do trabalho que os diretores experimentam no grupo de pesquisa de teatro da UnB Poética do Corpo. "Não focamos a perspectiva comercial, mas a experimentação de linguagens, cenografias, visões", reforça Alice, que dirigiu as cenas de Fernando e foi dirigida por ele. O revezamento na direção não evitou que os dois atores chamassem uma terceira pessoa para dirigi-los conjuntamente - a codireção ficou a cargo de Raquel Mendes, também do núcleo de pesquisa.
Durante a apresentação, dois filmes de animação transmitem uma história que reforça a mensagem de Duplos. Os filmes foram feitos por Bia Medeiros, diretora que utiliza novas tecnologias nas artes performáticas, incluindo fotos, desenhos, vídeos e computadores aos objetos do tablado.
Se as duas histórias são distintas e passadas em ambientes diferentes, a visão do espectador no entanto não corre o risco de se perder, ou confundir. Pelo menos é o que garante Fernando Santana. "A plateia navega de uma cena para outra; puxada por luzes, movimentos, diálogos. Enquanto um está em foco, agindo, o outro fica mais devagar", detalha o ator.
DUPLOS
Espaço Mosaico (714/715 Norte - Bl. D %u2013 Loja 16), de 5 a 22 de agosto. De quinta a sábado, às 21h, domingos, às 20h. Telefone: 3032-1330. Ingressos: R$ 20 inteira / R$ 10 meia. Classificação indicativa: 14 anos