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Diversão e Arte

Armando Freitas Filho ganha primeira antologia, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda

;Medalha no seu peito/E no meu o coração;, escreveu o poeta carioca Armando Freitas Filho, no livro Duplo cego, desconfiado de condecorações. Ele conquistou, ao longo de 55 anos de atividade poética, um grupo seleto de leitores, que inclui Antonio Cândido, Ferreira Gullar, José Miguel Wisnik, Silviano Santiago, João Moreira Salles e Walter Carvalho, entre outros. É reconhecido na condição de um dos melhores poetas brasileiros.

ARMANDO FREITAS FILHO
Seleção de Heloísa Buarque de Hollanda. Global Editora. 181 páginas, R$ 29E, agora, aos 70 anos de idade, Armando vive um instante de consagração, com o lançamento de sua primeira antologia, organizada pela professora Heloísa Buarque de Hollanda (Global Editora): ;A poesia de Carlos Drummond já foi difícil, mas hoje é mais fácil. Espero que a minha também esteja nesta fase, sem afrouxar a tensão;, comenta o poeta. Armando é tema de dois documentários recentes: Fio terra, de João Moreira Salles, e Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície, de Walter Carvalho, ainda em fase de finalização. Essa antologia tem o mérito de iluminar a poesia de Armando, mostrando que ele nada tem de um poeta esotérico, sempre expõe a sua verdadeira vida: ;Escrevo a minha vida./E o que sai do meu sonho/ou do meu punho/vem pela mesma veia/em dicção urgente.;

Aos 15 anos, para estupefação de sua família, ele decidiu que seria poeta. Quando começou, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira estavam no ápice de suas carreiras. Mas logo surgia o movimento da poesia concretista decretando que o ciclo histórico do verso estava encerrado. Armando discordou, batizou o seu primeiro livro de Palavra e submeteu os originais a Manuel Bandeira, que apresentou o seguinte veredicto: ;Interessantíssimo;.

Mas argumentou que um poeta jovem poderia ser melhor apreciado por alguém de sua idade e sugeriu dois nomes: Ferreira Gullar e José Guilherme Merquior. Armando repassou os originais a Merquior, que ficou entusiasmado e ligou para Fernando Sabino, então dono da Editora do Autor, perguntando se não teria algumas sobras de papel, pois era preciso editar um poeta jovem muito bom. Assim, Armando publicou o seu primeiro livro, no qual se pode notar a dupla influência de João Cabral (na arquitetura rigorosa do poema) e de Drummond (na carga existencial de uma poesia colada no corpo, colada na vida): ;Engenho de febre/sono e lembrança/que arma/e desarma minha morte/em armadura de treva.;

Armando é imbuído do sentimento do mundo e travou um intenso diálogo com os principais movimentos da poesia brasileira contemporânea. Com a poesia marginal, ele partilhava a reivindicação do corpo, mas discordava de Torquato Neto quando o líder daquela geração dizia que não se faz poesia com versos e o que interessava era o risco da vida. Para Armando, a poesia se faz com o verso, com a técnica e o coração: ;Escrever é uma pedreira/(;) Escrever é uma pedraria;.

Em 2003, Armando reuniu toda a sua produção até aquele momento sob o título Máquina de escrever. E, de fato, o título é apropriado, pois ele publicou 14 livros, sendo que três deles ganharam o Prêmio Jabuti: 3x4 (1986), Máquina de escrever (2003) e Raro mar (2007). O interessante é que, à medida que envelhecem, os poetas costumam vestir o fardão do academicismo, mas Armando continua produzindo uma poesia de alta qualidade, tensa e angustiada, em dramática contagem regressiva contra a presença da morte: ;Sou tomado por esta força, mas não há virtude alguma em minha inquietação;, comenta Armando. ;Não tenho cadeiras que não sejam de prego.;

É um carioca da gema, que torce pelo Fluminense, gosta de caminhar, de praia e da beleza feminina: ;Disparando dois tiros súbitos/Detrás dos óculos escuros:/Ela mata com os olhos;. Ele foi campeão de futebol de praia nos tempos em que era jovem e frequentava muito o Maracanã: ;Agora não vou mais porque eu já briguei de rolar na arquibancada, pois não aguento ver coisa errada. Quando vejo ciclista de capacete tomando o espaço dos carrinhos de bebê nas calçadas, eu chamo o sujeito de pré-lógico. Se eu chamar de burro, ele se zanga;. Mas, ao mesmo tempo, é meio dostoievskiano, meio russo, em plena paisagem solar escancarada do Rio de Janeiro, cidade que ele considera meio assaltante, pois a beleza ou a bala perdida podem entrar pela janela sem pedir licença. A morte da amiga e poetisa Ana Cristina Cesar, que pulou de um prédio, é um dos acontecimentos que abalaram a sua vida. E até hoje ele sente como se ela continuasse caindo: ;Você não para de cair/ fugindo/ por entre os dedos de todos:/água de mina,/ resvalando pelas pedras/ Nunca/nenhum poema acaba,/a não ser com um tranco/com um corte brusco/ de luz;.

Mas Armando é também um poeta solar, da vida e do vigor. O nascimento do seu filho Carlos, nome dado em homenagem ao poeta Carlos Drummond, foi um acontecimento que bateu na sua vida e em sua poesia.

E quem são os maiores poetas vivos do Brasil para Armando? ;Carlos Drummond, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira.;, responde o poeta, que presta uma reverência muito singular, pois os considera inimigos poderosos a serem enfrentados. Armando introduziu na poesia brasileira uma dicção nervosa, ríspida e urgente, em corpo a corpo dramático com a metrópole: ;Cada dia é uma bala de roleta-russa;.

Quatro perguntas para Armando Freitas Filho
"Parece que a minha poesia ficou fácil"

Você não é um poeta fácil, mas a sua poesia começa a ser reconhecida, apesar das dificuldades. Quais os efeitos que este reconhecimento está produzindo?

O que me espanta é o reconhecimento, pois, de uma maneira geral, toda a poesia é difícil. A poesia contemporânea é um objeto complexo. A minha está entre as mais difíceis. O fato de ser difícil tem dois gumes: um é que te deixa muito só e outro que quando corta te deixa alegre. O que mais me chama a atenção é que muitas editoras de ensino médio têm pedido poemas para publicar em coletâneas dirigidas a alunos do ensino médio. A poesia de Carlos Drummond já foi difícil, mas hoje se tornou fácil.

Quando eu era adolescente, ganhei um disco de vinil. Do lado A tinha Manuel Bandeira, que naquela época era o poeta consagrado com justiça, e do lado B havia Carlos Drummond de Andrade, que era considerado difícil, encrencado. Espero ter chegado a uma fase fácil e posso garantir que não afrouxei a mão.

O que estou produzindo agora?

O meu último livro Lar teve muita mídia. A gente se engana com o que escreve. Eu achava que era um lar fechado, mas acabou sendo o livro mais aberto. Houve uma adesão espontânea, as pessoas me param na rua e dizem que aquele livro que você fala de sua casa é muito bom, parece romance russo. São revelações que me espantam. Puxar pela memória não tem fim claro, até pensei em fazer Lar em dois volumes. Continuei a trabalhar neles, já tenho mais de 20 que seguem o mesma linha, a que dei o subtítulo de Suíte. Esses poemas não tiveram tempo de se aprontar para o Lar. E estou nessa memória que não acaba. A segunda parte do livro tem também uma influência ou uma sobra de um dos motivos de lar, que são os quartos escuros, a noite. Dei um título de Noturnos e já tem uns quatorze poemas. A noite cada vez chega mais perto de mim. Cada vez a gente fica mais longe do sol. Se não é uma fase alegre, tem sido profícua. Há muita coisa que a gente só enxerga quando entra neste socavão escuro. Não é um avesso, é um lado real que existe no corpo, esse confinamento até o confinamento final.

Parece que, apesar de todo o reconhecimento, você não se tornou um poeta acadêmica por causa da pressão da morte. Até que ponto essa impressão é verdadeira?

Confirmo, estou tomado por uma esta força. É uma força do negror, é um sol de Goeldi, o grande gravador. Mas, esta inquietação não vem de nenhuma virtude pessoal. Vem de uma hipocondria, não me bato para não ser acadêmico, não tenho cadeiras que não sejam de prego. Não tenho cama calma, a minha cama é sempre furiosa, não sou uma pessoa acomodada em meu corpo. Me sinto em uma pele errada sempre. Não estou contando vantagem, eu sou assim. É como se estivesse sempre alguma coisa beliscando, passo um scaner sobre o próprio corpo para ver o que está bom. Faço ginástica desde 1982 religiosamente. Eu digo que escrever é rezar com raiva, eu ando seis quilômetros na rua, gosto de ver a paisagem e as pessoas. Eu fiz uma promessa de não brigar mais na rua. Eu brigo quando vejo chofer de ônibus saindo aos arrancos com o passageiro. Meu filho pediu, por favor não faça mais isso. Mas há coisas que me deixam indignado. É o caso de ciclista que anda na calçada, veste capacete, luva e disputa espaço com carrinho de bebê ou gente de idade avançada. Eu chamo de pré-lógico. Se chamar de burro, o sujeito fica zangado. Há um lado de humor, adoro ver a cara de espanto, não sabe se de zanga ou de riso.

E qual a sua relação com o futebol?

Fui campeão de futebol de praia, na minha extrema juventude. Tenho um poema em que falo disso, da alegria de jogar futebol na praia, com o mar perto, a briga pela bola, o chute de areia na cara do goleiro e depois de tudo o banho no mar. É uma coisa muito do Rio de Janeiro. Vejo os jogos do Brasil, vejo com relativa calma. Se o Brasil perde, perdemos todos. Agora, se o Fluminense perdeu, sou eu que perco. Não posso sair na rua porque o jornaleiro é amigo e vascaíno. Ele fica me esperando passar. Tenho de bater boca a cada 300 metros porque porque sou falador, não guio carro, ando a pé da Urca até Botafogo e cruzo com vascaínos, botafoguenses e os horrendos rubronegros, nossos inimigos históricos. Eu ia muito ao Maracanã, mas agora não vou mais não porque brigo muito. Já briguei de rolar na arquibancada. Mas, depois que começei a usar óculos permanentes deixei de brigar, pois se alguém me tira os óculos não enxergo nada. O tempo passou veloz. Eu sou um idoso. Sou uma das poucas pessoas que conheceu Carlos Drummond de Andrade.

TRECHOS DE POEMAS DE ARMANDO FREITAS FILHO

Para Carlos (o filho do poeta)

Você é todo coração, extremo.
Ultrassonográfico e estremecido
A 155 p/minuto
E daqui para frente, bate até o fim.
No início, indiviso, profissional
Somente por si mesmo
Sem tempo de devaneio
No meio da estática, da tempestade
De outro corpo
Que o guarda agora, coeso
E que depois o expulsará
Quando você quiser fugir

Curto, puro, urgente

Quieta. Isto aqui
É cego, surdo, mudo.
Só come
Tiro no escuro
Anônimo.
Cada corpo é um beco
Sem n, saída, perdido:
Não vai dar em lugar nenhum.

Caçar em vão

Às vezes escreve-se a cavalo
Arremetendo, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando
por cima sem puxar o freio ;
a galope ; no susto, disparado
sobre as pedras, for a da margem
feito de patas, sem cabeça]
nem tempo de ler no pensamento
o que corre ou o que empaca:
sem ter a calma e o cálculo
de quem colhe e cata feijão.