Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Entre dois submundos

Artista plástico, Fernando Carpaneda narra em livro sua trajetória no underground de Brasília e Nova York, cidades que marcaram sua obra

Fernando Carpaneda tem uma relação de amor e ódio com Brasília. Viveu a década de 1980 entre Taguatinga e o Plano Piloto. Atravessava a cidade de carona ou ônibus e aprendeu que ser punk da periferia era bem diferente de calçar coturnos e morar na Asa Sul. Carpaneda ainda era um adolescente quando seu aspecto pouco convencional barrava a entrada em coquetéis de galerias de arte. No entanto, as pinturas do rapaz eram boas o suficiente para atrair compradores nas mesmas galerias. Brasília virou então uma terra de contrastes no entendimento do então jovem artista. ;Amo sua beleza arquitetônica, seu potencial para artes, o céu e tantos outros atributos. E odeio a segmentação, a futilidade, o deslumbramento, a violência e o provincianismo de que é vítima;, conta.

Quase três décadas se passaram, tempo bastante para o artista olhar para trás com a segurança de nunca ter se dobrado às convenções. Foi um pouco tal certeza que permitiu escrever o livro O anjo de butes. Não haverá coquetéis de lançamento nem festas e o conteúdo do livro pode ferir alguns, mas o autor não se importa, ele nunca pretendeu agradar ninguém mesmo. ;Quis escrever sobre algumas questões culturais que foram fundamentais para a história de Brasília e que jamais deveriam ser esquecidas, pois marcaram a cidade na década de 1980 e influenciaram as décadas seguintes. Muitas pessoas têm curiosidade sobre esses assuntos. Fiz questão de não omitir nada;, avisa. Nascido em Brasília há 43 anos, Carpaneda é personagem do submundo brasiliense e de lá retirou os temas das primeiras esculturas e pinturas.

No Conic e bares undergrounds da capital, encontrou os primeiros personagens ; mendigos, punks, travestis, michês e prostitutas com os quais convivia e cujos rostos serviram de modelo durante anos antes de se mudar para Nova York. As esculturas hiperrealistas do artista atraíram a atenção dos curadores da galeria do CBGB, anexa ao clube de rock, que viu nascer bandas como Ramones e Velvet Underground. Os personagens colhidos na noite brasiliense tomaram as vitrines do templo do punk rock nova-iorquino e Carpaneda, aos poucos se instalou na cidade. O anjo de Butes percorre principalmente as vivências em Brasília, mas traz também um pouco do período vivido em Nova York.

O autor escreveu o livro como um acerto de contas com o anjo do título, um namorado com o qual viveu um triângulo amoroso, mas também como um registro de seu próprio processo criativo. ;Recebo sempre muitos e-mails de artistas, vindos de várias partes do Brasil, onde me perguntam como conquistei o reconhecimento que tenho no exterior. Achei útil contar minha trajetória, bem como as dificuldades de ser artista plástico no Brasil;, diz. ;Digamos que escrevi o livro para Brasília... É meu presente para os 50 anos da cidade!” Um presente que não poupa a cidade. O autor confessa não sentir falta da capital federal e descreve a cidade como um lugar difícil para quem não se adequa a padrões conservadores.

Contrastes
À vontade mesmo, Carpaneda só sentia em locais como o Conic. ;Lá tive a oportunidade de ver e conhecer a diversidade de tipos de uma cidade como Brasília, bem como perceber os contrastes de valores e a imensa distância das condições de vida que separam as classes sociais. Muitos artistas preferiam frequentar o ParkShopping. Eu gostava do Conic.; O triângulo amoroso formado com o anjo do título e a amiga Cassandra pontuam metade da narrativa. Nos anos 1980, quando não dormia na casa de algum amigo no Plano ou na rua, Carpaneda se refugiava nos fundos da casa dos pais, em Taguatinga. Na época, faltava de tudo, menos afeto dos amigos. E amigos escolhidos no mesmo universo do qual retirava personagens.

O anjo de butes é também uma crítica muito pessoal do autor à cultura punk rock da capital. Carpaneda não se cansa de se diferenciar do que chama de punks burgueses, filhos de diplomatas antenados com as novidades de Londres e Nova York. Editado e finalizado nos Estados Unidos, o livro ganha uma primeira edição em português antes de ser lançado em inglês pela editora norte-americana Blurb. Ao lado, o artista e escritor fala sobre o livro e os anos 1980 em Brasília.

Trecho: O anjo de Butes, de Fernando Carpaneda

"Sempre que possível, íamos também à Rainbow, uma boate muito badalada nos anos 1980, que ficava no Gilbertinho, um centro comercial do Lago Sul. O espaço era uma bosta, mas os donos tocavam as principais novidades musicais trazidas do exterior.

Todo o movimento cultural daquela década passou pelo Gilbertinho, que foi também um dos principais pontos para a criação dos meus futuros personagens. Lá conheci vários dos meus amigos.

Às vezes o local tornava-se perigoso, com as brigas de gangues, drogas e tiroteios. Era igual a Taguatinga, só que no Lago Sul. A polícia costumava aparecer no meio da noite para acabar com as festas, mas não tinha moral para isso, já que elas aconteciam num bairro altamente burguês. O medo de prender algum filho de diplomata ou político era maior.

Os falsos punks, que moravam em Taguatinga e se misturavam aos playboys da cidade, tinham carona garantida e lugar para dormir. Como éramos radicais e nos recusávamos a pegar carona com aquela gente, preferíamos dormir na rua. Lembro-me que numa dessas viradas de noite acordamos atrás de uma parada de ônibus do Lago Sul."