Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Mostra resgata melhores filmes do faroeste italiano, como Django, Três homens em conflito e Eles me chamam Trinity

O gênero cinematográfico homenageado pode até ser dos mais antigos, com Certidão de Nascimento datada de 1903, mas a verdade é que a mostra Faroeste spaghetti: o bangue-bangue à italiana, a partir de terça-feira no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), tem por mérito avançar na exibição de um nicho de subprodutos irreverentes (por vezes, austeros) capazes de, reformulados, repercutir por décadas. Contemporâneos ao cinema existencialista de Michelangelo Antonioni e às populares comédias à italiana, e antecessores do cinema político da terra de Elio Petri, os mal distribuídos (no Brasil) títulos do faroeste espaguete engataram uma linha de produção sessentista na qual, em dois anos, foram feitos mais de 130 filmes. Sem pretender fazer uma representação histórica (acatando o tipo de western que encobriu até a matança dos índios), o faroeste spaghetti se valeu de redefinições nos heroicos conceitos de pioneirismo e nas lambanças que propunham o restabelecimento da ordem em vilarejos, isso sem desprezar a função dinâmica das cenas de acertos de contas. Aparar o psicologismo excessivo nos títulos norte-americanos foi uma das metas de Sergio Leone, o representante máximo das inovações com o faroeste spaghetti, tido por Clint Eastwood como um terreno "para a comédia atuada com absoluta seriedade". O diretor de Menina de ouro, por sinal, se converteu ao culto de Leone, por um irrisório salário de US$ 15 mil, mais as passagens para a Espanha, ambiente das filmagens de Por um punhado de dólares (1964), que inaugurou a confraria, estendida por seis filmes, entre Leone e o mitificado compositor Ennio Morricone. Enquanto o diretor John Sturges assumiu o decalque de Os sete samurais (de Akira Kurosawa), no clássico western Sete homens e um destino (1960), Sergio Leone, baseado em Yojimbo (outra fita de samurai de Kurosawa), comandou Por um punhado de dólares (programado para a mostra) com mesclas de humor e fatalismo para o primeiro dos "homens sem nomes" embutidos numa trilogia dos dólares (que terá exibição completa no CCBB). No roteiro que cunhou a célebre expressão "Adiós, amigo", Clint Eastwood era o forasteiro Joe, que, metido numa contenda das dinastias Baxter e Rojo, em torno de contrabandos, se torna volúvel, na mexicana região de San Miguel. Referencial, ao menos no nome, para toda a sorte de genéricos que se apropriaram do papel-título, Django (1966), outro eleito para a mostra em Brasília, trouxe "o papel mais importante da carreira" para Franco Nero, ator de filmes até de Luis Buñuel e Rainer-Werner Fassbinder. Morto há 20 anos, o diretor Sergio Corbucci, que adotou o pseudônimo Stanley Corbett (num artifício corriqueiro, haja vista inclusive Leone se autodenominar Bob Robertson) na realização de Django prestou homenagem, pelo título, ao jazzista Django Reinhardt. Ex-crítico de cinema e diretor assistente de Roberto Rossellini, Corbucci - com passado inserido no gueto capa, espada e sandálias - também teve samurais como fonte de inspiração para a história do pistoleiro que carrega um misterioso caixão e atira a esmo, depois de chegar a uma região esvaziada pelo racismo, entre outras fontes de intolerância. Com esmero técnico, o filme tem notável música de Luis Enríquez Bacalov (premiado com O carteiro e o poeta), além de fotografia assinada por Enzo Barboni. Barboni, por sinal, está representado em Faroeste spaghetti: o bangue-bangue à italiana por Eles me chamam Trinity (1970) e Trinity ainda é meu nome (1971), ambos calcados na química de bons desentendimentos fundada pela dupla Carlo Pedersoli e Mario Girotti, mais conhecida por Bud Spencer e Terence Hill. Bom "castigo", aliás, foi imposto para Hill, segundo o diretor Tonino Valerii, que, no cultuado Meu nome é ninguém (1973), fez o antigo pândego Hill encarar o lendário Henry Fonda (na pele do quase aposentado ídolo Jack Beauregard). Produzido por Sergio Leone, o filme - que traz uma marcante cena de impostores infiltrados numa barbearia %u2014 foi realizado na província espanhola da Almería (com outras cenas ainda nos EUA) e encerra uma espécie de epitáfio ao faroeste spaghetti, com reverências que se estendem a Sam Peckinpah (Meu ódio será sua herança) e Samuel Fuller (Matei Jesse James). Do luxo ao nicho Dos recorrentes enredos que tocam em desbravamentos ferroviários ou investem em fugas e aventuras rocambolescas, a mostra Faroeste spaghetti: o bangue-bangue à italiana reserva insuspeitas curiosidades. São factoides do porte da investida dos socialmente engajados Damiano Damiani e Klaus Kinski no popularesco gênero, com Uma bala para o general (1966). Na lista, vale destacar as excentricidades prévias do cineasta Enzo Castellari - saudado por Quentin Tarantino na apropriação do título The inglorious bastards (1978). Castellari, que levou até personagens shakespearianos para os saloons, em Johnny Hamlet (1968), na mostra do CCBB será representado por Keoma (1976), encabeçado pelo solitário personagem de Franco Nero. No ano em que esteve à frente de outros três filmes, 1969, Giuseppe Colizzi é lembrado, na programação, por Trinity - A colina dos homens maus. Finalmente, seria uma completa heresia falar de faroeste spaghetti sem citar Era uma vez no Oeste (1968), uma ritualística obra de Sergio Leone, com cinco longas integrados ao painel que tem Alexandre Sivolella como curador. Se cruzou fronteiras "interplanetárias" do épico (como definido por um crítico estrangeiro), com Três homens em conflito (1966) - centrado em Clint Eastwood, Lee van Cleef e Eli Wallash, literalmente, enterrados pela ganância que circunda 200 mil ilícitos dólares -, Leone teve como alicerce as imagens capturadas por Tonino Delli Colli. É do mesmo profissional que, novamente, ele se vale, no revisionista Era uma vez no Oeste, que teve a versão integral propiciada, em 1980, pelo interesse pessoal de Martin Scorsese. Faroeste spaghetti: o bangue-bangue à italiana Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2; 3310-7087). De terça-feira a 22 de agosto, com sessões diárias (exceto às segundas-feiras). Vinte filmes selecionados sob a curadoria de Alexandre Sivolella serão apresentados em película, a partir do apoio do Instituto Italiano de Cultura. Ingressos, R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 12 anos. Música para os olhos Depois de incursões como arranjador para músicas de Mario Lanza e Rita Pavone, para além das animações em clubes noturnos, Ennio Morricone seguiu em direção a uma sólida carreira de compositor de trilhas cinematográficas e televisivas, num invejável conjunto com mais de 400 produções. Se começou a compor aos seis anos, Morricone seguramente foi influenciado pelo pai, um trompetista de jazz. O trombone foi instrumento de interesse para ele, que, dado o acelerado aprendizado, concluiu em menos de dois anos o curso de música na prestigiada Accademia di Santa Cecilia (Itália). Tendo trabalhado com diretores de peso, entre os quais Gillo Pontecorvo, Terrence Malick, Roman Polanski e até Federico Fellini, aos 81 anos, Morricone - que traz no currículo trilhas inesquecíveis como as de A missão (1986) e Os intocáveis (1987) - nunca se livrou do próprio legado, uma vez que é indissociável das colaborações com os faroestes, particularmente aqueles assinados por Sergio Leone. Saiba mais sobre Sergio Leone Morto aos 60 anos, em 1989, Sergio Leone só teve a estreia na direção após a passagem pelos bastidores de 56 filmes, que renderam a base para administrar a tensão reinante nas paisagens descansadas de Era uma vez no Oeste, a partir de complexos movimentos de câmera. Dizimados pela disputa de terras, um punhado de personagens injeta propósitos para a vida da ex-prostituta (feita por Claudia Cardinale) que quer fundar uma sociedade em meio ao nada. Da primorosa campana na estação de trem em que o vingativo Harmônica (Charles Bronson) se materializa ao tratamento de reverência dado aos tipos de Woody Strode, Jack Elam e Henry Fonda, o filme, nobre desde a gênese (Dario Argento, Bernardo Bertolucci e Leone respondem pelo argumento), é muitas vezes, no bom sentido, celebrado como uma ópera, dado o entrosamento entre Sergio Leone e o músico Ennio Morricone. Entrevista com Alexandre Sivolella, curador da mostra Qual o nível de aceitação do lote de filmes, àquela época? O consumo se deu em escala mundial? Houve muitos detratores do movimento também? Num primeiro momento, houve certa restrição por parte dos críticos mais tradicionalistas. Mas os filmes caíram rapidamente no gosto popular e também obtiveram boa repercussão de crítica. Nesse sentido, o papel desempenhado pelo Sergio Leone, com Por um punhado de dólares, foi fundamental para apontar direções e sedimentar caminhos. Ele apresentou uma releitura criativa de um gênero clássico e junto com outros diretores deu gênese a um novo gênero cinematográfico. O faroeste europeu se mostrou mais cru, violento, estetizado e politicamente engajado do que o americano. A ação se desenvolvia com mais força que os diálogos. As grandes orquestrações deram lugar às trilhas sonoras inovadoras, que fizeram a fama de compositores como Ennio Morricone, o mais famoso deles. Alguns críticos ressaltam que Leone conferiu um certo caráter operístico ao faroeste. O consumo se deu inicialmente na Europa, particularmente na Itália, e com o tempo alcançou repercussão mundial. O faroeste sempre foi um gênero popular na Itália. Giorgio Ferroni, que depois dirigiria O dólar furado, com Giuliano Gemma, chegou a dirigir uma adaptação de Romeu e Julieta no Velho Oeste na década de 1940. As restrições comerciais impostas pela Segunda Guerra Mundial impediram que faroestes americanos chegassem a alguns países da Europa. E, com o tempo, o faroeste americano migrou do cinema para a televisão. Os europeus decidiram então produzir seus próprios faroestes. Produtores alemães, ingleses e espanhóis investem na produção de alguns filmes, como a série de filmes Winnetou, com direção de Harald Reinl, baseada na obra do escritor alemão Karl May. E então entraram em cena os italianos, que realmente revolucionaram o faroeste feito na Europa. No início, até chegavam a usar pseudônimos americanos e ingleses para atrair a atenção. Para a versão internacional de Por um punhado de dólares, por exemplo, Sergio Leone usou o pseudônimo Bob Robertson como diretor do filme. Houve detratores. Criticava-se o faroeste spaghetti por imprecisões históricas, por falta de contato com a realidade. A estetização era considerada excessiva. Alguns filmes chegaram a ser censurados pela violência. Como foi feita a curadoria? Quais os critérios principais para a eleição dos filmes a serem vistos na capital? A mostra já percorreu outras praças? A curadoria buscou enfatizar dois aspectos. O primeiro, o de homenagear os principais realizadores do faroeste spaghetti: Sergio Leone, o grande mestre, Sergio Corbucci e Sergio Sollima seriam os principais nomes. O segundo viés era o de mostrar as transições pelas quais o gênero passou. No início, a sedimentação das bases do spaghetti: o caráter operístico, sua estética crua, a encenação de tiroteios coreografados, a trilha sonora, o leitmotiv da vingança, as motivações secretas dos personagens, o Velho Oeste selvagem e violento. Em seguida, os anos de glória, em fins da década de 1960. A trilogia dos dólares, os filmes com caráter político, como O dia da desforra, de Sergio Sollima; Uma bala para o general, de Damiano Damiani e Os violentos vão para o inferno, de Sergio Corbucci. Foram filmes que obtiveram grande sucesso inclusive no terceiro mundo, pelas questões intelectuais e políticas que colocavam, numa época em que os novos cinemas ecoavam pelo mundo e faziam a cabeça dos jovens revolucionários. Com a entrada dos anos 1970, o faroeste spaghetti vai encontrando o seu declínio. A produção decresce, são produzidos alguns filmes como Sartana, em que a paródia começa a ganhar corpo, e logo entram em cena os filmes cômicos, como a série de filmes protagonizada por Terence Hill, com o personagem Trinity. São filmes como Meu nome é Trinity e Trinity %u2013 Ainda é meu nome, de Enzo Barboni, ou Meu nome é Ninguém, de Tonino Valerii. Ainda nesse mesmo tempo, no entanto, alguns filmes mais sérios foram produzidos. Corbucci e Leone produzem alguns de seus últimos filmes no gênero, respectivamente com Vamos matar, companheiros e Quando explode a vingança. Já nos estertores, os filmes se tornam mais estilizados e melancólicos, apontando para o apagar das luzes, como Keoma, de Enzo Castellari. Fale um pouco das tuas experiências profissionais. Por que o interesse pelo nicho explorado? Eu sou formado em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), e hoje sou produtor. Tenho uma produtora chamada Segunda-Feira Filmes. Nós fizemos alguns curtas-metragens, filmes institucionais e temos uma especialização recente em vídeos educativos. Já produzimos outras mostras recentemente, como José Dumont, o Homem que Virou Cinema, em homenagem a um dos grandes atores do cinema brasileiro, que circulou pelos CCBBs Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, além de diversas outras cidades com o CCBB Itinierante. Além disso tivemos a mostra Primeiros Olhares, com os primeiros filmes de alguns dos grandes diretores do cinema contemporâneo, e a mostra 1968: Cinema, Utopia, Revolução, que busca os filmes que foram lançados no ano em que o mundo sofreu profundas mudanças em diversos aspectos sociais, políticos, enfim, culturais. O interesse no faroeste spaghetti vem do início da faculdade, quando tive a oportunidade de assistir a Era uma vez no Oeste. Fiquei boquiaberto o filme inteiro. Percebi que estava diante de uma obra-prima da história do cinema. Um dos maiores filmes já produzidos, com direção impecável. Uma releitura tão brilhante de um dos gêneros mais consagrados, que consegue superar as próprias obras consideradas históricas. Descobri então que havia muito mais por trás daquele grande filme, que havia muitos outros personagens, filmes, diretores, enfim, todo um mundo de referências. E pensei que aquilo merecia uma homenagem. O spaghetti dá margem a muito humor. Nesse sentido, quais os títulos com mais estofo (no quesito) e comente, por favor. Em relação ao humor no faroeste spaghetti, sem dúvida se destacam os filmes com o Terence Hill, nome artístico de Mario José Girotti, italiano de Veneza, filho de mãe alemã e pai italiano, que tornou o personagem Trinity, conhecido pelas cenas em que ao invés de montar o cavalo é levado por ele numa esteira. Atuando desde jovem, Hill chegou a atuar com seu nome original em O leopardo, de Visconti. Mas foi ao lado de Bud Spencer, outro italiano que assumiu um pseudônimo no cinema, que fez grande sucesso no cinema, inclusive no exterior e especialmente no Brasil. Falar em Terence Hill e Bud Spencer é se lembrar de matinês intermináveis no cinema. Minhas sugestões são os filmes Meu nome é Trinity e Trinity ainda é meu nome, de Enzo Barboni, e Meu nome é Ninguém, de Tonino Valerii. Fora do limite dos títulos clássicos (Era uma vez no Oeste, Por um punhado de dólares), quais os três filmes que você destacaria? O que dá qualidade a cada um deles? Para além dos clássicos do Leone, julgo imperdíveis para uma melhor compreensão do fenômeno do faroeste spaghetti os filmes Django, de Sergio Corbucci, que constrói o tema da vingança como tema principal de uma forma referencial, servindo de inspiração para um sem número de produções que vieram em seguida; O dia da desforra, de Sergio Sollima, um filme bastante politizado, que aborda a luta de classes num conflito de terras na fronteira dos EUA com o México e que desfaz o mito do herói como a grande figura defensora da lei, e ainda Os violentos vão para o inferno, de Sergio Corbucci, que talvez seja o maior filme do que é conhecido como um faroeste spaghetti do tipo "faroeste Zapata", ou seja, filmes de faroeste que abordam a Revolução Mexicana. Qual o aspecto ou ressalva mais importante relacionado à mostra? Foi muito difícil conseguir obter essas cópias e trazê-las para o Brasil. Não encontramos em nossas prospecções de cópias, nenhuma disponível aqui no país. Embora extremamente populares há menos de 40 anos, alguns desses filmes só têm cópias hoje em mãos de colecionadores particulares, aos quais o acesso é quase impossível. As cinematecas mais importantes do mundo durante muito tempo consideraram preservar apenas os filmes que são tidos como obras-primas do cinema. Não é difícil conseguir os filmes de Sergio Leone, por exemplo. Mas todos os outros foram muito mais complicados. Isso dificulta uma compreensão abrangente da história do cinema. Felizmente conseguimos manter a nossa proposta curatorial inicial. Gostaria muito de ter trazido um filme que é quase único, O vingador silencioso, de Sergio Corbucci, um faroeste que se passa no inverno, na neve, e é extremamente inovador e cáustico no tema que aborda, mas não foi possível. De todo modo, o faroeste spaghetti não apenas revolucionou o faroeste clássico, como construiu novas bases para o cinema a partir de então. A trilha sonora em cinema nunca mais foi a mesma. Hoje, ao pensarmos em faroeste, quase sempre vêm à cabeça os duelos de Leone, Clint Eastwood com seu poncho e seus olhos azuis afiados ou as composições com gaitas e assovios de Ennio Morricone. Cineastas como Quentin Tarantino, que reverenciam o cinema como poucos, só existem por conta de filmes como os do faroeste spaghetti, dentre outros gêneros, movimentos ou momentos do cinemaé claro, que são às vezes tidos como menores. A mostra será uma oportunidade imperdível de ver esses 20 filmes em conjunto, algo que nunca ocorreu no Brasil antes.