Para executar o Estudo n; 5 de Fréderic Chopin o pianista precisa ter uma agilidade para tocar melodia na mão esquerda enquanto desliza o acompanhamento na mão direita utilizando apenas as teclas pretas, as menores do piano. A peça dura singelos dois minutos e é de notável dificuldade técnica. No entanto, o compositor Leopold Godoswki, polonês conterrâneo de Chopin, decidiu dificultá-lo mais ainda lá pelo fim do século 19. Fez cinco variações para a pequenina e tortuosa peça. Em uma delas, uma mão toca as teclas brancas enquanto a outra desliza pelas pretas, um verdadeiro desafio no quesito coordenação de neurônios. Não contente, Godowski reescreveu todos os 24 estudos de Chopin e criou uma nova obra, conhecida como Estudos sobre estudos de Chopin, com um total de 54 partes. Pois é esse monstro do repertório pianístico que o italiano Francesco Libetta, 41 anos, executa hoje no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) ao inaugurar a série de concertos Chopin insólito.
Poucos pianistas investem tempo e estudo na obra de Godowski. Libetta é um dos poucos no mundo a incluir as 54 peças no repertório. A intimidade com Chopin ajuda. O italiano gravou a integral da obra do polonês e já recebeu prêmios como o Diapason d;Or, um dos mais importantes da música erudita na Europa. O recital precisou ser dividido em duas partes de uma hora e meia por causa do tamanho da peça. ;Na verdade, um livro;, corrige Libetta, que tocou a obra completa pela primeira vez há 20 anos e só repetiu o feito em duas outras ocasiões desde então.
Os estudos de Godowski foram desprezados pelo mundo do piano durante muitos anos. Quando o compositor concluiu o que ficou conhecido como transcrições, Igor Stravinsky, Maurice Ravel e Claude Debussy já brilhavam nas salas europeias com um pianismo mais moderno e muito diferente do romantismo da época de Chopin. ;Ele escreveu na época do positivismo, quando se acreditava no desenvolvimento das artes e imprimiu ali um susbtrato do pianismo do século 19, por causa da complexidade dos movimentos. Ele é um grande coreógrafo dos dedos;, avisa Libetta. ;É um pianismo perfeito para todo o século 19 do ponto de vista mecânico, mas quando encontrou essa chave para tudo que o precedeu Godowski foi interrompido pelo rumo que tomou a história da música. Ele perdeu o trem. Só agora ele começa a ser respeitado e conhecido.;
;Correndo risco;
Francesco Libetta acabava de completar 17 anos e já estava no conservatório quando começou a estudar a peça do compositor Leopold Godoswki. Fez isso antes mesmo de se aventurar nos originais de Chopin. ;Quando toquei os estudos originais foi como beber um copo d;água porque todos os problemas estavam resolvidos. A idade foi perfeita, eu ainda não estava ciente da dificuldade e do perigo. Todos os braços e dedos estão o tempo inteiro correndo o risco de serem machucados. É preciso realmente controlar tudo, até a quantidade de energia e força.; Inédita no Brasil, a composição dá o tom da proposta do brasileiro Giulio Draghi, organizador da série, idealizada em comemoração ao bicentenário de nascimento do polonês. Em vez de investir nas mesmas obras incessantemente tocadas em recitais e concertos, ele preferiu montar um repertório de curiosidades.
O próprio Giulio Draghi será o solista do segundo recital da série, para o qual escolheu obras do polonês Carl Tausig, aluno de Franz Liszt e o primeiro a recriar sobre os estudos de Chopin, em meados do século 19. Um dos estudos selecionados para o recital nunca foi sequer editado e o manuscrito está guardado na Biblioteca do Congresso, em Washington. ;Tausig foi o pioneiro, o melhor intérprete de Chopin do século 19. Na época não era de mal gosto revisitar um compositor, tocar o que estava escrito denotava falta de criatividade do intérprete. Depois da Segunda Guerra as edições ficaram muito precisas e houve um efeito colateral, um purismo que faz com que as interpretações careçam de fantasia;, conta Draghi, professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-aluno de Jacques Klein. No palco, o pianista brasileiro terá a companhia do clarinetista Paulo Sérgio dos Santos para interpretar uma versão Estudo n; 2 de Chopin para clarineta e piano, escrita pelo russo Butyrsky.
Peças para orquestra
Até o fim, a série recebe ainda o Trio de Câmara de Emmanuelle Baldini (violino), Johannes Gramsch (violoncelo) e Rogério Zaghi (piano) para peças de autoria do próprio Chopin, mas pouco executadas nos repertórios dedicados ao polonês, como a Sonata para violoncelo e trio. Especialistas admitem que o compositor não era um grande orquestrador. Escreveu apenas dois concertos para piano e orquestra e pouquíssimas peças para instrumentos de corda ou sopro.
Mas Chopin dominou a técnica do piano de maneira tão natural que praticamente tudo já foi tocado, gravado, regravado pelos mais importantes pianistas do planeta. ;Não há um conservatório em que, neste minuto, alguém não esteja tocando algo de Chopin;, arrisca Darghi. ;A série propõe um olhar diferente, insólito no sentido de que há muitos compositores depois de Chopin na virada do século 19 que começaram a fazer transcrições da obra dele, a fazer arranjos, dificultando mais. Os pianos foram crescendo, o virtuosismo também, a técnica aumentou de maneira extraordinária.;
Romantismo
Nascido em 1810 na Polônia e exilado na França a partir de 1831, Frédéric Chopin foi o compositor mais importante do romantismo quando se trata de piano. Dominava como poucos a técnica e compôs peças fundamentais para o estudo do instrumento. O romantismo transcendental e extremamente melódico de seus noturnos, prelúdios e estudos fez com que se tornasse o compositor mais popular de seu tempo. O enterro de Chopin, em 1849, foi acompanhado por mais de
três mil pessoas.