Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O Correio acompanhou a exibição do filme Evolução de uma família filipina, no CCBB

A sessão começou às 10h, teve dois intervalos de 30 minutos e só terminou às 22h

No último sábado, o brasiliense acordou com a possibilidade de fazer um programa muito diferente. A exibição do filme Evolução de uma família filipina, do diretor Lav Diaz, dentro da mostra Descobrindo o cinema filipino, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), tinha como diferencial a impressionante duração: 10 horas e 43 minutos. O filipino Herbert Inocalla, 59 anos, professor de artes marciais, está fora de seu país há 36 anos - 33 deles em Brasília. "Fiquei muito feliz com a notícia de que haveria a mostra de cinema filipino. Vim para matar as saudades da minha terra", contou. "E o senhor vai ficar até o final?" "Acho que sim. Que horas vai acabar?" "Lá pelas 22h." "Nossa, não sabia! Tudo bem! Não tenho nada para fazer hoje mesmo%u2026" Instrutor de yogaterapia, meditação, tai chi e terapias corporais, o mestre ensinou o segredo para o corpo não sentir os efeitos de permanecer tanto tempo na mesma posição. "É preciso se alongar. Mexer o pescoço, as mãos", explicou Inocalla. Rosa Maria Schenardie, bancária aposentada, 60, sabia da extensão do filme. Mas não conseguiu segurar a curiosidade. "Precisava saber o que acontece num filme de 11 horas. Trouxe água e algumas frutas, que deixei no carro", disse. Ela foi vestida de moletom e tênis para aguentar o ar-condicionado e o tempo em que passaria sentada. Pelo mesmo motivo, o professor aposentado Jaime Guilherme Pereira, 63, foi ao CCBB. [SAIBAMAIS]Os três foram os únicos que se arriscaram a enfrentar a provação de passar praticamente 11 horas assistindo ao mesmo filme. Apesar de animada e falante, a bancária abandonou a sessão no primeiro intervalo, às 14h. "Não sei se posso comparar o cinema americano ao filipino, mas demora muito para acontecer alguma coisa. Ele coloca uma rua deserta e depois de muito tempo aparece alguém na tela", opinou Rosa. O time pequeno, mas coeso de bravos espectadores não ficou desfalcado por muito tempo. Logo chegou a também aposentada Ana Falcão. "Eu sou muito, muito cinéfila. Venho a todas as mostras do CCBB. Tive um compromisso mais cedo e não deu para chegar antes", justificou Ana. Crítica social O estilo anticatarse de Diaz é desenvolvido em narrativa não linear que varia entre dois núcleos da família de agricultores Gallardo. Um protagonizado por Kadyo e sua mãe, a matriarca, e outro pelo núcleo da família liderado pelo casal Marya e Fernando. Eles são subterfúgio para que o realizador desenvolva uma crítica social profunda. O olhar afiado do cineasta alcança até a mídia popularesca representada por uma radionovela de qualidade duvidosa, que usa como chamariz de audiência o abuso sexual de uma menina pelo padrasto. O espectador é obrigado a refletir sobre o próprio cinema filipino em entrevistas concedidas pelo veterano Lino Brocka (1939-1991), o primeiro cineasta daquele país a conseguir notoriedade no exterior, crítico agudo da indústria cinematográfica local por se rebaixar aos padrões hollywoodianos. Durante a projeção, era comum que as pessoas saíssem da sala para caminhar ou comer alguma coisa. Ao contrário do que acontece em sessões ditas normais, ninguém foi censurado por estar atrapalhando. As longas sequências sem diálogos permitiam que até mesmo os legendadores fizessem um passeio para esticar as pernas. Ao longo do dia, pessoas entravam e saíam da sala escura para saber o que estava acontecendo, mas acabavam abandonando o barco. Às 17h, o sol já se punha do lado de fora do CCBB e a jornada dos cinéfilos estava apenas pela metade. Um casal da terceira idade quis saber que filme estava passando na mostra. Ao serem informados de que a sessão estava apenas no meio e que a película era preto e branco, eles nem se arriscaram a entrar. Enquanto isso, na tela, a trajetória dos Gallardo era mesclada à derrocada do ditador Ferdinand Marcos pela Revolução do Poder Popular. Diaz elabora análise profunda sobre seu país ao misturar as tragédias da família com a história recente das Filipinas. "O povo filipino gosta de liberdade. Isso está no filme", constatou o professor filipino ao fim da exaustiva sessão. "Não tive vontade de ir embora em nenhum momento", comentou Ana. "O filme prende mesmo", definiu o professor Jaime. Todos se declararam cansados, porém satisfeitos com a empreitada. DESCOBRINDO O CINEMA FILIPINO Até domingo, no Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2, Lt. 22; 3310-7087). Amanhã, às 14h, exibição de Melancolia (Filipinas, 2008, 441min, não recomendado para menores de 14 anos), de Lav Diaz. Sessão com dois intervalos (15 minutos e 30 minutos). Entrada franca. Quem é o diretor O mais velho dos cineastas da nova geração filipina é considerado o pai ideológico do cinema daquele país. Lav Diaz é conhecido por fazer filmes de longuíssima duração. Melancolia, uma das fitas dele exibidas na mostra, leva sete horas. "Fazer filmes longos é uma atitude política", diz o diretor em entrevistas. Em visita ao Brasil por conta da mostra Descobrindo o cinema filipino, o conterrâneo de Diaz e também cineasta John Torres explicou em debate da mostra que, devido à duração dos filmes de Diaz, o público chega preparado para as sessões carregando cobertores e travesseiros e levando comida. O que vocé pode fazer nesse tempo » Onze horas é o tempo gasto em uma viagem de avião do Brasil para a Europa; » Dá para fazer o trajeto Brasília%u2013Goiânia de carro quatro vezes. Ou o percurso Brasília%u2013Belo Horizonte, com folga, e ainda sobra tempo; » O Barreado, prato típico paranaense feito com linguiça, toucinho e carne, leva quatro horas para ficar pronto. Onze horas é quase o tempo de preparar três receitas.