Domingos Oliveira, 73 anos, guarda algumas dívidas. Uma delas é escrever sobre o que chama de ;tempos etílicos;, quando fazia parte da rotina beber nos bares cariocas até altas horas. Outra é com os hippies. O dramaturgo e cineasta acredita ter entendido a contracultura como ninguém. Por que não fez as peças? ;Porque não tive tempo. A alma é vaga, mas a vida é curta. É uma dívida que tenho comigo mesmo e vou morrer devendo algumas coisas.;
Mesmo com as dívidas, Domingos Oliveira não deixa de investir em outras histórias e projetos. É um pouco uma redenção o que ele faz em Minha vida no teatro, compilação de peças encenadas e filmadas, acompanhadas de comentários do próprio autor e lançada pela editora Leya. São nove peças escritas nas duas últimas décadas, textos que hoje ainda parecem frescos e resistem à releitura do autor. ;Fiz um copidesque, uma atualização dos meus pensamentos sobre teatro escritos na última década. Eu pensava a mesma coisa sobre o espírito do teatro;, avisa.
Nos comentários, além de narrar as circunstâncias nas quais escreveu textos como Todo mundo tem problemas sexuais, Apocalipse e Confissões das mulheres de 40, o diretor conta curiosidades autobiográficas e reflete sobre teatro no Brasil. Domingos nunca teve vontade de escrever a própria biografia. No entanto, fez dezenas de peças autobiográficas, nas quais submete personagens fictícios às experiências vividas ou observadas. O diretor encara cada uma das montagens como uma aventura existencial.
A perspectiva feminina é algo que gosta de acalentar. Boa parte das obras falam de relacionamentos humanos narrados do ponto de vista de mulheres. Confissões de mulheres de 40 tomou forma porque o dramaturgo sempre preferiu frequentar conversas femininas. O futebol e a política das rodas masculinas lhe pareciam entediantes. Colocou numa sala algumas de suas mulheres prediletas ; a esposa, Priscilla Rozenbaum, Cacá Mourthe, Clarice Niskier e Dedina Bernardelli ; e mandou que simplesmente conversassem. Com Clarice, lapidou o texto da peça, mais tarde transformada no longa Feminices.
Mas Domingos se permite perspectivas nem tão femininas, porém sempre afetivas. Foi assim com Sérgio Britto, que queria um papel para um ator de 83 anos e ganhou Jung e eu, em que avisa à plateia que ela está sendo sonhada. Em Largando o escritório o diretor seguiu o palpite de um empresário engravatado dono de teatro. ;Por que não faz uma peça sobre as pessoas que vão ao teatro?;, perguntou o senhor. Domingos fez, não sem acrescentar um pingo de ironia à narrativa dos pequenos burgueses yuppies. ;Gente que inventa uma felicidade que o dinheiro pode comprar;, descreve.
Domingos nasceu, viveu e morreu em cada uma dessas peças. No prefácio, ele argumenta que não faz sentido falar de sua vida ;externa; ao teatro. A experiência dessas nove encenações não caberiam em um livro. Logo, Minha vida no teatro é, na definição do autor, um voo de pássaro sobre a vida ;interna; no teatro. O Domingos menino nasceu em 1936. Ninguém do ambiente familiar cultivava a leitura, tampouco as artes. Aprendeu a ler literatura fuçando em enciclopédias. Anotava os livros que achava relevantes. Não conseguiu ler nem a metade, mas ainda insiste. O Domingos dramaturgo nasceu em uma aula de português. Escalado para um papel em peça de encerramento do ano letivo, acabou nos bastidores porque o medo do público não deixou as falas saírem. Mas muitos diálogos saíram da cabeça do escritor nos anos seguintes. Foram 63 peças encenadas. Dessas, 31 colhidas nas próprias fantasias do autor.
Ao final do livro, o dramaturgo toma ares de teórico e faz seu próprio manual do teatro. Do tamanho da vida é uma declaração de princípios, uma reflexão atual e um manifesto que ensina a postura diante do palco e o amor à profissão. Livro lançado, Domingos agora está ávido para voltar a filmar. Reclama da falta de patrocínio, mas não se curva à realidade. No blog que substituiu o diário e a agenda, ele ensaia um roteiro para um filme independente, barato e, se necessário, precário.
Até câmera de celular poderá ser usada na falta de equipamento adequado. ;Não aguento ficar sem filmar. Se eu não arranjar dinheiro para fazer nas melhores condições faço nas piores condições.; A história será o de sempre. Relações. Mas há também outras possibilidades, como a do Idiota Plástico, ou IP, personagem ao qual Domingos gosta de recorrer para falar de arte. O blog serve também para reflexões e dicas. A mais recente é para os internautas checarem o filme Tudo pode dar certo, de Woody Allen. ;Adorei, achei magnífico. Acabei aos prantos. Quando ele se joga pela janela. Aquela trindade do happy end final. Aquela história acabou mal, mas a cortesia que o Woody Allen tem com o público, de não ferir o público, é de uma beleza extraordinária. É a clareza de sentimentos, a cortesia do filósofo;, garante o escritor, que revela em entrevista ver pouca arte no cinema brasileiro atual e acha a velhice uma ;sacanagem;.
Três perguntas - Domingos Oliveira
Alguns escritores ficam irritados com a insistência dos leitores em saber os limites entre a realidade e a ficção. E no teatro, essa
é uma questão que te incomoda?
Sou considerado, e às vezes acusado, de ser autobiográfico em excesso. Acho que toda obra é autobiográfica. Você só escreve sobre o que você conhece, sobre o que viveu ou viu viver. Ao mesmo tempo toda obra não é autobiográfica, você ficcionaliza, coloca no palco, faz ter outra significação. A vida real não tem a linguagem do teatro e do cinema, você precisa ficcionar aquilo. A mentira é a alma do negócio, dizia o Fellini. Tento ser o mais autobiográfico possível, mas para fazer isso tenho que mudar tudo. Quem buscar o factual na minha obra não vai achar. Para dizer a verdade sempre é melhor a mentira.
Você às vezes brinca e afirma que é mulher. O que você faria contra a velhice se fosse mulher?
Tem que manter a chama do desejo. Ter vontade de viver ou de morrer entre um passo e outro. É o que desejo para mim. Morrer entre um passo e outro indo para um lugar interessante. E tem que parar de dar bola para essa besteira da beleza física. Beleza física tem uma garota de 20 anos. Um amigo me disse que o auge da beleza da mulher é quando ela é virgem, um momento antes de fazer amor pela primeira vez, porque um mês depois as linhas são deformadas pela fadiga da paixão. A beleza é uma coisa passageira. Depois vale a beleza interior.
Juventude, seu penúltimo filme, é também sobre a velhice. O que é a velhice para você?
É uma ignomínia, uma sacanagem, uma injustiça.
Acha que mudou muita coisa nas relações de amor desde que começou a escrever até hoje?
Mudou bastante. Vivemos tempos altamente reprimidos do ponto de vista emocional, sexual e amoroso. Tivemos uma fase gloriosa entre a invenção da pílula e aparição da Aids. Foram poucos anos, mas foram gloriosos do ponto de vista da liberdade sexual. Hoje enxergo uma frieza e um medo do amor muito grandes. É como se não valesse a pena. Tenho estado muito com jovens e digo sempre que na idade deles a coisa mais importante do mundo para mim era o amor. Aí eles me dizem ;para nós não;. Acho que eles mentem, mas de certa forma é verdade. É uma geração menos sexualizada. Vejo tanta menina bonita aí que nem namorado tem. Até os 30 uma moça não quer ter filhos, não quer um companheiro, quer aproveitar a vida como se isso existisse de modo absoluto. A paixão que te leva a uma relação mais forte, isso não tem mais. Tudo é sexo, menos a paixão. A paixão é transcendente, é louca. E falta essa loucura.