;Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida, a senha do mundo. Vou procurá-la. Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo, procuro sempre;;Palavra mágica, poema de Carlos Drummond de Andrade, trata do poder e da magia que a palavra, o grande instrumento dos poetas, exerce.
Seja na forma escrita, falada, jamais podemos subestimá-la. Um dos ofícios mais antigos de que se têm notícia, os contadores de história(1) sabem como ninguém desse fascínio. E é através dela, da palavra, que eles vêm encantando gerações. ;Além de você exercitar o prazer de ouvir, ainda mais nesse mundo tão conturbado em que vivemos, onde quase não há espaço para se escutar, a gente ainda consegue dar ênfase ao valor da palavra. O contador resgata esse ouvir e esse falar. Quando conto uma história, tento potencializar cada pessoa a contar depois a sua história. A gente faz com que o indivíduo se exponha à criação e deixe-se transformar por esse jogo;, ressalta Elisete Teixeira, atriz e uma das precursoras na arte de contar histórias em Brasília.
Se antigamente as histórias eram contadas somente pelos pais e avós na cabeceira da cama ou ao redor de uma fogueira, hoje, o contador se tornou uma profissão e está presente nas escolas, shoppings, praças, hospitais e feiras. A essência de narrar não mudou, mas muitos grupos se valem de outras técnicas como o teatro, os bonecos e a música para dar uma incrementada nas fábulas, contos e lendas.
As meninas do Tagarelas, por exemplo, grupo criado há 15 anos por Miriam Rocha e Simone Carneiro, apresentam as histórias utilizando recursos como fantoches, avental chinês, instrumentos musicais e painéis, e acreditam que eles ajudam a dar mais dinâmica e a estimular a imaginação de quem está ouvindo. ;São artifícios que os contadores têm na hora de narrar. Mas a base é a oralidade mesmo. Percebo que há uma carência não só nas crianças, mas nos adultos em estar ouvindo histórias. Além do mais, sentimos a necessidade de resgatar as histórias infantis, que vêm sendo atropeladas por uma onda tecnológica onde as crianças se fecham em um mundo individualista;, acredita Miriam.
[SAIBAMAIS]Já a contadora e escritora Clara Rosa afirma que a meninada do século 21 gosta sim dessa onda high tech, mas não deixa, jamais, de ser criança. ;Contar histórias é uma arte, uma magia que encanta qualquer um. Mesmo com a tecnologia, o videogame, o computador, a criança não deixa nunca de se sentir atraída pela contação, porque ela se transporta para um outro mundo, viaja para um universo que é só dela, que ela fantasiou. E o mais interessante é que isso não fica restrito aos pequenos. Gente de todas as idades se deixa seduzir pela contação de histórias;, opina ela, que organiza a cada dois meses um sarau na Biblioteca Demonstrativa de Brasília com vários contadores de histórias da cidade e um convidado de fora. ;Nossa intenção agora é realizar um Festival Internacional de Contadores de História em Brasília, algo que nunca teve por aqui;, espera.
Para Tino Freitas, do Roedores de Livro, um dos grupos do ramo mais conhecidos na cidade, quando se conta histórias com paixão, independentemente da forma que for, o ganho pessoal acontece antes da apresentação, quando o contador ; que, segundo ele, deve ser antes de tudo um bom leitor ; mergulha nos livros, na cultura do mundo, para escolher o que vai contar para o outro. ;Aí, acontece a outra mágica, que é dividir com o outro essas histórias, o prazer de conhecê-las, a alegria de contá-las e, quem sabe, incentivando-o a contar a outro também, independente da forma;, destaca.
Tradição oral
Os contadores de histórias têm suas origens na tradição oral, pois o conhecimento era transmitido verbalmente de uma geração para outra; graças à oralidade, as sociedades antigas foram preservadas. Na década de 1970, nos Estados Unidos, muitos narradores tornaram-se profissionais da literatura oral. Um resultado disso foi a criação da National Association for the Perpetuation and Preservation of Storytelling (NAPPS), agora National Storytelling Network (Rede Nacional de Literatura Oral), que auxilia a angariar recursos para narradores e organizadores de festivais.
Resgate de tradições
Um dos principais benefícios proporcionados pela arte de contar histórias é o estímulo à leitura e o resgate de narrativas e personagens dos tempos da carochinha. O músico Marcelo Tibúrcio e a esposa, a pedagoga e professora Adriana de Oliveira Maciel, criaram o grupo Matrakaberta, de Taguatinga, que segue bem a linha tradicional dessa manifestação artística. ;Fazemos um trabalho de incentivo à nossa cultura, ao nosso folclore. As crianças conhecem o Mickey, o Tarzan, a Bela Adormecida, mas não sabem quem é o caipora, o saci, a burrinha. Por isso a gente tenta resgatar essa tradição dos nossos avós. O nosso modo de contar é bem próximo do tradicional;, comenta Marcelo.
Para Adriana, o contador tem um papel fundamental na formação das crianças, pois, por meio da maneira que narra, vai despertar ou não a curiosidade delas. ;Através da contação de histórias, a gente pretende incentivar a imaginação e a expressão criativa, além do gosto pela leitura. O ser humano, por natureza, gosta de imaginar. Está na sua essência, principalmente da criança. A nossa função é estimular esse terceiro olho também;, destaca a contadora do Matrakaberta que se apresenta gratuitamente no projeto Hora Animada, do Boulevard Shopping, todos os sábados à tarde.
Performance
Mesmo com um número razoável de grupos, Brasília ainda engatinha na contação de histórias, se comparada aos grandes centros do país, como Rio e São Paulo. A cidade ainda carece de espaços e, sobretudo, divulgação. Tino Freitas, do Roedores de Livro, revela que sente que o mercado está crescendo por aqui, embora isso esteja muito restrito ao público infantil. ;Há algumas pessoas que se destacam pela performance ou por estar há mais tempo em atividade. Mas ainda cabe ousar no repertório e valorizar o cachê. Acredito que, se alguém se aventurar a contar histórias com paixão e talento para adultos, encontrará um público extenso e atento. É uma área ainda pouco enveredada por aqui. Mas fica o recado: o público, mesmo infantil, tem que ser tratado com inteligência e respeito;, defende.
Aldanei Menegaz, do grupo Eu Vou te Contar, está desenvolvendo uma dissetação de mestrado em que traça um panorama dos contadores de história no Distrito Federal e diz que está se surpreendendo com o número de pessoas, principalmente, de professores que querem aprender esse ofício.
Segundo ela, é difícil hoje uma escola não ter um projeto de leitura em sua biblioteca e que falta mesmo é incentivo. ;Público não falta para isso. Sempre me senti atraída por contar histórias. Essa busca pela história, você se inteirar dela e repassar o que leu. Elas têm muito a nos ensinar, seja para quem está lendo ou ouvindo. É uma arte ancestral, que resgata um passado, traz para o presente e te joga para o futuro. Isso é fascinante;, resume.
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