Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Poemas do livro A máquina das mãos de Ronaldo Costa Fernandes



Anoitecimento
Anoitece no meu coração coberto de ervas
e, na luta desigual, cresço com a miséria.
Trens trazem minérios de rumor e tristeza.
Além da janela, homens caçam a manhã,
enterram no lodo o tempo da esperança
e cavam fundo até aparecer o osso do mundo.
Nem mesmo as minhas imaginações servem
na tarde ferida e de tijolos exaltados
para inventar suposta vida
que não seja experiência sem retorno.
A vida como carro desgovernado
a mais de duzentos quilômetros por hora,
em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada.
Se ao menos soubesse
o ponto de chegada dos lobos,
não me atormentaria com o tempo
que não tem começo nem fim.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)



Poema sobre arames
Há mãos farpadas
que não ouso tocar
assim como algumas
barbas que é o ódio
que escorre
das comissuras da boca.



Há lençóis de arame farpado
na cama de dois
que não são mais um.



Oh coleção de línguas
que ao lamber a carne
abrem feridas.



Já o arame dos teus olhos
são farpas que nada cercam.
Tuas cercas, até mesmo tuas cercas,
são mais vivas que as minhas.



Farpada é minha mente
que me fere quando penso
o que pensar não deveria.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)





Férias
Aqui, quieto em meu canto,
sem mexer-me, olhando a luz higiênica do sol,
penso na inutilidade cansativa de malas e hotéis
para divertir-me nas férias estrangeiras.
Não, só preciso da vontade,
nem sempre firme,
um vento estradeiro,
um alarde distante de pássaros
e nada além do meu corpo.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)


Barcelona
Sento-me no café,
a placidez da praça com seus pombos,
a inexatidão do foco das nuvens,
o amargo do adoçante,
e a canção pedinte de um acordeão.
Percebo que não estou no estrangeiro
nem que falam em língua catalã,
aí compreendo que sempre estive sentado num bar
e que a multidão passa, indiferente e pedestre.


Na cidade velha, Cervantes
morou de frente pro mar
; quem sabe não chegou a pensar
em Dom Quixote como marinheiro?
Ruas tortas de Miró e Gaudí
amolecem as molduras das janelas
fechadas para se protegerem
de tanto peixe e dentes solares.
O mapa de papel nunca existe
antes de eu desenhá-lo
com o papel mais fino da memória
e estrias de pés alucinados.
Neste café, estive moído
cada grão de pesar
esmagado na trituração
do bairro velho que me habita.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)


Churrasco
Da minha janela, vejo fornos crematórios.
As pequenas chaminés se sucedem como um i sem pingo.
Da fumaça que lhe escapa
há rumor de tédio, carne e sal grosso.
Durante a semana os campos de concentração,
que são quintais,
se mantêm vazios e sem prisioneiros
além das árvores inúteis
que parem sem que ninguém as olhe.
Nos fins de semana,
começa o sacrifício de bois e rins
e a fumaça se evola, em suas cólicas
cinzas, a passagem das horas,
o riso grotesco dos feriados,
o ritual de queima e álcool,
a embriaguez da vida
cuja ressaca é a morte.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)





Fuga não barroca
Há muita coisa armada
no horizonte de concreto das cidades.
Não entendo por que minhas mãos
não têm palmas.
Minha pupila, por sua vez,
não aprende a realidade.
Da música de que sou feito,
pouco tenho harmonia,
e, pelos cantos,
há bastante fuga em mim.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)








O maratonista
que rumo persegue o maratonista,
avestruz no meio da rua?
que explicação tem o maratonista
para inventar outra fisiologia
fazer das pernas um moto contínuo?
que logra o maratonista nesta longa
jornada dia adentro,
vestido de suor e magreza?
que espera o maratonista
em seu cronômetro de pulsações por minuto?
que sonha o maratonista
em sua luta contra o relógio
cujos ponteiros são as pernas?
Não sabe o maratonista
que passar a vida correndo
é ver a vida correr e passar,
ele, que impulsiona o corpo,
desconhece que o corpo
é que é a pista de corrida da
maratona da vida.
(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)