Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Leia crítica do filme e sobre o quadrinho que inspirou o longa

A carreira do roteirista escocês Mark Millar é marcada por histórias em quadrinhos que tentam aproximar o mundo fantasioso dos super-heróis da vida real. Em Kick-Ass, ele leva isso praticamente ao pé da letra. O protagonista Dave Lizewski é um fanático por quadrinhos que certo dia se pergunta por que ninguém nunca vestiu uma fantasia colorida e saiu pelas ruas combatendo o crime. Em pouco tempo, ele resolveu ser o primeiro a fazer isso. Nasce Kick-Ass.

Um mundo real com vigilantes mascarados também é a premissa da cultuada minissérie Watchmen (lançada no final dos anos 1980). Mas as semelhanças entre a HQ de Alan Moore e Dave Gibbons (cuja adaptação cinematográfica chegou aos cinemas no ano passado) e a de Mark Millar e John Romita Jr. param por aí. Watchmen, mesmo com uma trama séria, tem muito de fantasia, enquanto Kick-Ass tem pretensões mais realistas (até onde uma menininha de 10 anos dilacerando bandidos com espadas pode ser considerado realista).

Millar colocou diversas referências à cultura pop em Kick-Ass. Os sites YouTube e MySpace são parte importante da história. Citações a seriados de tevê, filmes, celebridades e, claro, HQs, estão por todo lado. Dave Lizewski, o típico adolescente loser, ajuda a dar credibilidade a esse contexto. A violência explícita é outra característica frequente dos trabalhos de Millar. Não faltam sangue e vísceras espalhadas pelas páginas.

Se não prima pela originalidade narrativa, nem pelas reviravoltas do roteiro (algumas aliás, são previsíveis), Kick-Ass cumpre bem a proposta de ser uma divertida revista de super-heróis ; ainda que, no fundo, os protagonistas não sejam exatamente isso. Os pontos altos da série são os personagens (em especial Hit Girl e Big Daddy) e os diálogos afiados, entre o bom humor e o palavrão.

Depois de oito edição (publicadas, nos Estados Unidos, entre fevereiro de 2008 e fevereiro de 2010), a série é concluída sem deixar pontas soltas, ainda que dê margem para uma continuação. Aliás, o roteiro de Kick-ass é tão ;redondinho;, que praticamente pede para virar um longa-metragem.

Talvez se fosse outro o artista da série, o resultado não funcionasse tão bem. Mas o veterano John Romita Jr. é um dos melhores do ramo. Com seu traço inconfundível e seu clássico estilo Marvel de contar histórias, ele cria painéis impactantes e cenas rápidas e cheias de ação com apenas poucos quadros. Como teve tempo para preparar cada página, o desenhista conseguiu com Kick-Ass um de seus melhores trabalhos nesta década. Kick-Ass ; Quebrando tudo chega às livrarias brasileiras este mês, em edição encadernada, com a minissérie completa e capa dura.

Kick-Ass
Mark Millar e John Romita Jr.
208 páginas. Editora Panini.
Preço não divulgado.



Crítica - Kick Ass ; Quebrando tudo ***
Sangue nos olhos


;Por que ninguém nunca tentou ser um super-herói?; A questão que tira o sono do protagonista de Kick-Ass ; Quebrando tudo é respondida logo na primeira cena do filme. Um adolescente vestido com uniforme colorido, pronto para alçar voo, salta de um arranha-céu e se espatifa no teto de um táxi. O mergulho fatal, narrado com uma lente cruel, resume as intenções de Matthew Vaughn: o curto-circuito entre realismo e fantasia é a estratégia usada pelo cineasta inglês para fuzilar o espírito ;família; que contagia as superproduções inspiradas em histórias em quadrinhos.

O público que admira as liberdades (e as ousadias) do universo das HQs, portanto, se sentirá vingado. Sem sentimentalismo excessivo ou ingenuidade, Kick-Ass transita o tempo inteiro entre a estética sombria do cinema policial e o tom debochado de comédias juvenis. Arteiro, o diretor não impõe limites morais para o comportamento dos personagens ou para a própria narrativa, que cita explicitamente as provocações de Stanley Kubrick (em Laranja mecânica) e Quentin Tarantino (em Kill Bill). E, nas cenas de ação, mostra o desejo muito genuíno de atualizar a cartilha hollywoodiana: as imagens são engendradas por câmeras de vigilância, vídeos do YouTube e mensagens de celulares.

Já para as plateias mais sensíveis ao traçado extremo das graphic novels (ou da escola japonesa de ação, por exemplo), a virulência inconsequente de Kick-Ass pode arder nos olhos. A sensação de incômodo será inevitável quando a heroína infantil Hit Girl, 11 aninhos, orquestrar carnificinas com os malabarismos de espetáculos circences. Na corda bamba entre a sátira e a homenagem aos filmes de super-heróis, Vaughn não critica os excessos desse tipo de entretenimento. Não toma posição. Prefere turbinar um mix acelerado, arruaceiro, de Watchmen ; O filme e A vingança dos nerds, com a vibração alegre de uma matinê. Uma pílula de pólvora ; que vai travar a garganta de muita gente.
(Tiago Faria)


Saiba mais
Discípulo de Tarantino


No começo da carreira, Matthew Vaughn escondia-se à sombra de Guy Ritchie. Hoje, está na linha de frente de Hollywood, prestes a pilotar a primeira superprodução. Entre um e outro episódio, o filme Kick-Ass ; Quebrando tudo foi fundamental para inflacionar o passe do cineasta londrino. Nascido em 7 de março de 1971, o diretor ocupa uma posição incomum no cinema de entretenimento. A experiência como produtor (de filmes como Jogos, trapaças e dois canos fumegantes e Snatch ; Porcos e diamantes, ambas de Ritchie) sustenta a conclusão de projetos arriscados, rejeitados pelos grandes estúdios.

Pago com a ajuda de amigos, em esquema independente, Kick-Ass comprovou a eficiência de Vaughn, casado com a modelo Claudia Schiffer, como homem de negócios. O longa-metragem, produzido a US$ 28 milhões, já rendeu US$ 93 milhões. Os lucros provavelmente serão multiplicados na continuação Kick-Ass 2: Balls to the wall, programada para 2012. Antes disso, o diretor assina X-Men: First class (2011). Com um método que lembra as pequenas companhias norte-americanas dos anos 1990 (como Miramax e Fine Line), o inglês investe em filmes que não se enquadram nos padrões típicos de sucessos de bilheteria.

O prestígio de Vaughn como cineasta, no entanto, ainda não é tão sólido. Nos filmes Nem tudo é o que parece (2004) e Stardust (2007), o diretor passou quase despercebido, sem demonstrar intimidade com o cinema policial (no primeiro caso) ou com tramas fantasiosas (o segundo). Mas Kick-Ass virou o jogo: elogiado pela crítica norte-americana e inglesa, revelou um diretor que tenta seguir as pegadas de autores como Quentin Tarantino e Danny Boyle (Trainspotting). Um cinema que subverte clichês, tritura referências pop e, com graça, admira o próprio umbigo.
(TF)