Aos 10 anos, em 1957, Walnízia Santos chegou à Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante) e logo enfrentou uma realidade muito diferente da que estava acostumada, quando vivia em Goiânia. O conforto do centro deu lugar ao chão batido, à falta de água e de luz elétrica, e a um único cômodo, de madeira. O pai, relojoeiro, teve suas duas lojas assaltadas na mesma noite. A família passou a depender da confecção de vestidos costurados pela mãe, vendidos às famílias de funcionários da Novacap. As ruas, ora enlameadas, ora empoeiradas, deixaram na menina, hoje escritora, uma sensibilidade que é digna de quem ajudou a escrever a história de Brasília. Autora de Retalhos poéticos, publicado em 2006, Walnízia lança hoje, às 19h30, na livraria Saraiva do shopping Pátio Brasil, o livro de memórias A cor da minha vida.
Ela conta que sair do terreno da poesia para se lançar à escrita de sua própria história a fez ;ser mais verdadeira;. Os relatos narram a infância e a juventude de alegrias, dores, conquistas e perdas, revelações editadas em ordem cronológica. ;Inicialmente, a finalidade dos relatos não era torná-los públicos e, sim, permitir que meus filhos e netos soubessem, com mais detalhes, como era a vida na Cidade Livre antes da mudança da capital, em especial o período da minha segunda infância, totalmente diferente da que eles viveram;, comenta.
Com o novo livro, ela sente que conseguiu encerrar a experiência de expressão dos sentimentos iniciada nos poemas do último livro. ;Mesmo nas poesias, eu me desnudo revelando emoções e me coloco como protagonista. Eu precisava, entretanto, mostrar de forma mais minuciosa quais foram os acontecimentos, as alegrias e as dores que me inspiraram na criação dos poemas. Então com os relatos a história se completa;, explica.
A vida artística de Walnízia começou no teatro, uma paixão antiga que foi protelada pela formação em Direito, que rendeu 28 anos de serviços prestados à Novacap. Após a formação jurídica, foi aprovada no primeiro vestibular da Faculdade Dulcina. ;Passei a não ter vergonha de me expor e falar de minhas ideias e emoções;, diz. Os quatro filhos a acompanhavam nos ensaios. Dois deles, o músico Marcello Linhos e a atriz Adriana Nunes, são bem conhecidos do público pelas montagens da Cia. de Comédia Os Melhores do Mundo (Marcello assina direção técnica e iluminação de espetáculos do grupo).
Em A cor da minha vida, Walnízia está à vontade para conversar consigo mesma sobre o seu passado e, ainda assim, deixar para o leitor uma universalidade emocional, ainda que em tom confessional, que tem muito a dizer sobre a sua relação com a cidade. ;Mostro sem hipocrisia as glórias e o desgaste do meu casamento; as tristezas e as dificuldades do processo de separação; a dor pela morte do pai dos meus filhos, três anos depois, e a reconstrução da minha vida. Isso poderia ficar guardado na minha memória e morrer comigo, não fosse essa vontade férrea de me revelar, mostrar o que se passou e o que se passa nos meandros do meu coração;, analisa.
A cor da minha vida
De Walnízia Santos. R, 80 páginas. R$ 23. Lançamento hoje, às 19h30, na livraria Saraiva do shopping Pátio Brasil.
Trechos
"Aprendi com minha mãe a lavar roupa no riacho, a quarar e a usar anil no enxágue; eu ficava orgulhosa vendo a roupa bem alvinha no varal. Também aprendi a juntar gravetos e acender o fogão a lenha; torrar o café verde, moê-lo e passá-lo no coador de pano; sempre colocar água na talha São João . Aprendi a cozinhar, varrer o chão de terra do barraco, aguar o quintal para fazer baixar a poeira, lavar as vasilhas com areia e limão-china, até o alumínio brilhar ao sol. À noite, fazia acabamentos em vestidos, enquanto mamãe costurava na máquina de pedal. Eu recolocava querosene nas lamparinas e atiçava o pavio para que ela enxergasse melhor; fazia sempre um café novo e levava para ela, ou queimava chá mate com brasas, cobria com água fervente e depois coava. Isso lhe dava ânimo para continuar costurando madrugada adentro.
Eu tinha muita pena da minha mãe; queria dividir com ela o trabalho e a dor que às vezes eu via em seus olhos."
"E havia os campeonatos de pipa. Cada criança se empenhando mais que as outras para criar a pipa mais bonita. Papéis de seda de todas as cores eram recortados e colados com grude de polvilho que nós mesmos fazíamos. Eram lindas as nossas pipas, tanto o corpo quanto a rabiola. E o céu virava um arco-íris."
"O desgaste do nosso casamento foi surgindo silenciosamente, vagarosamente sem que percebêssemos. Tão sutil, que nem vimos seus sinais. Como as subterrâneas trilhas das formigas que vão, pouco a pouco, solapando um terreno. Como um veneno administrado em doses homeopáticas, sem que a vítima sinta os seus efeitos."
"No tribunal, estávamos lívidos e assustados, mas fingimos serenidade. Tínhamos uma polidez britânica um com o outro. Saímos cada qual para seu lado, como se toda uma vida a dois pudesse ficar para trás, apagada. Fui carregando no coração um vazio que pesava como chumbo."
"Três anos depois, a morte abraçou o meu amado numa estrada portenha. Fui buscar, não só o pai dos meus filhos, mas o homem que tinha sido o grande amor da minha vida. Essa missão era minha. Quando a dor é muito grande, as dores menores nem são sentidas. Fiquei anestesiada, não sentia fome nem frio. Era tomada por uma força que eu não sabia de onde vinha.
Fui à delegacia ver o carro. Chorando, toquei o volante e o banco onde ele estivera nos seus últimos momentos. Minhas mãos ficaram marcadas com o sangue dele."
"Fiquei por aqui, imóvel como aquelas velhas árvores que, nas tempestades são sacudidas e perdem galhos e folhas, mas não arredam pé do solo em que foram plantadas."
"Aos poucos fomos nos fortalecendo e tentando encontrar novas formas de lidar com o cotidiano. Meus filhos cresciam e amadureciam.Durante cinco anos após a morte do Gotte, eu lutei como uma leoa que protege e defende seus filhotes e seu território."
"A minha vida está ficando mais doce à medida em que cresce também o meu amor por mim. Mudei alguns valores, conservei outros que considero importantes. Deixei de recitar orações automáticas. Não acredito em tudo que relatam os evangelhos e as doutrinas. Sou seletiva. Sei perfeitamente das manipulações e dos desvirtuamentos efetivados ao longo dos séculos pela Igreja, em harmonia com o Estado. Deixei de frequentar templos por obrigação e me julgo mais humana e cristã do que antes."
"Vivenciei a beleza de me apaixonar novamente, viver outras estórias de amor com pessoas que me fizeram rainha e com outras que não me valorizaram o bastante; mas todos foram relacionamentos que me enriqueceram, pois me transformaram numa mulher mais sábia, mais compreensiva, tolerante e amorosa. Estou segura de que, uma vez derrubado o mito do amor eterno, todos podemos ser mais felizes, de forma mais leve e menos possessiva, sem prisões nem cobranças."