Rio de Janeiro - Uma virada à direita da orla foi o suficiente para o diretor Laurent Tirard - responsável pelo estrondoso sucesso do filme O pequeno Nicolau (foto) - se sentir "noutro mundo", ao prestigiar a exibição da fita para crianças, no campinho da comunidade do Vidigal. A ação com apoio do grupo Nós do Morro, integrada ao Festival Varilux de Cinema Francês - a postos para reverter o quadro de queda de bilheteria no Brasil (um dos três maiores consumidores na América Latina) -, ainda que com público limitado, explicitou o poder universal do cinema: o mundo de contos de fadas projetado nas telas conquistou interatividade na sessão.
"O incrível no livro que adaptei para o cinema é ter sido escrito nos anos 1950 por um autor que via a obra como ultrapassada, pois retratava a infância dele, nos anos 1930. Ainda assim, as crianças hoje têm conexão imediata com o que ele escreveu", observou Tirard. Se sentiu tensão, frente ao desfilar de alguns fuzis, o cineasta gostou de estar ligado à zona periférica: "Foi estimulante, por nos darmos conta de que não vivemos na realidade".
Desapegado do glamour, o ator Adél Bencherif, que veio em função do papel-chave no multipremiado O profeta (pelo qual foi indicado ao César), enriqueceu o contato com o maior país da admirada América Latina. "Não relaciono o trabalho como ator com nível de popularidade. O mais rico é o lado humano proporcionado nas visitas pelo mundo. Não é a minha primeira vez no Brasil, pois já sonhava com o país e ele é melhor do que meu sonho", disse.
O entrosamento cinematográfico entre a França e o Brasil (que, na França, disputa os 5% de mercado com o cinema feito fora da protegida cultura francesa ou de Hollywood) segue até quinta-feira, nas salas de nove capitais - em Brasília, no Embracine -, com uma dezena de filmes diversificados e recentes, entre os quais, o documentário Oceanos (leia entrevista com o codiretor Jacques Cluzaud).
A estratégia de divulgação soma-se a outras de enfrentamento à proliferação dos Multiplex: além dos subsídios às salas de cinema alternativo, na França, há projetos de formação de público e pretensões da reconquista de espectadores, até por meio de festivais de cinema (inclusive via internet) e pela difusão regulamentada ao acesso de fitas na rede mundial.O Correio entrevistou (abaixo) a trinca de atrizes tornada colírio para os olhos durante o Festival Varilux: Anna Mouglalis, Julie Sokolowski e Frédérique Bel.
Três perguntas - Jacques Cluzaud (diretor)
O legado de Jacques Costeau obteve peso no longa de vocês?
Por ser pioneiro no desbravamento marítimo para o audiovisual, Cousteau influenciou a todos nós. Alguns cientistas, mergulhadores e técnicos do filme estiveram no Calypso, o famoso barco do mestre. Oceanos, porém, é um filme de cinema, não necessariamente um documentário. O ponto de vista dominante é o dos animais. Trata-se da emoção de estarmos tão próximos a eles como nunca foram vistos. Foi algo especial: trabalhamos com especialistas que dedicaram a vida à compreensão minuciosa das engrenagens da natureza. A mescla com pessoas que pensam o cinema resultou no diferencial da experiência.
Após as filmagens, houve interferência visual durante a edição?
Não usamos computadores. Tudo está na absoluta integridade, sem adulterações na pós-produção. Só para as cenas das matanças, tivemos que recorrer à encenação. A resultante das agressões teve que se fazer presente: não pudemos poupar o público de cenas como as da imobilidade dos animais, com o uso de redes de caça, ou do sentimento de quando você mata uma baleia, um golfinho, ou ainda de quando você mutila um tubarão apenas pela nadadeira, desprezando o resto do corpo.
Quais foram as grandes surpresas no contato com os animais?
Muito frequentemente, sentíamos que eles não nos observavam, mas éramos, sim, observados. Em Galápagos, particularmente, frente a iguanas, isso ocorreu, já que veem um cientista a cada 20 anos. Os pesquisadores arregimentados para a produção nos deram presentes: uma dupla de australianos expôs um polvo, assemelhado a lençol, um animal que nunca havia sido filmado. Eles nos deram as diretrizes para a aglomeração de caranguejos, dispostos como se fossem um exército. Apesar do aspecto peculiar, o asian sheepshead wrasse (tipo de peixe exótico) foi fotografado na fase de ancião, com a cabeça extremamente salientada, o que é raro. Os animais não mantinham a distância; eu nunca tinha visto nada parecido. Na frente deles, nem sabia quem realmente pensava.
EM BRASÍLIA
» Iniciado na sexta-feira, o Festival Varilux de Cinema Francês terá completado até quinta-feira 28 sessões, com cardápio diversificado de 10 filmes recentes (na imensa maioria, inéditos) do cinema francês. Com a carência atual de produções do nicho alternativo em Brasília, o festival supriu a lacuna na programação, aberta com o incêndio nas salas da Academia de Tênis. O evento tem grade que contempla todo o lote integral de títulos - que inclui o premiado retorno de Isabelle Adjani (em O dia da saia) e o mais recente título de François Ozon (O refúgio).
O repórter viajou a convite do festival