O que era para ser símbolo de descaso público, virou abrigo da arte de resistência. É assim o Centro Cultural "Inacabado" da Ceilândia - território que mantém, hoje, grupos históricos, como O Hierofante, em atividade. Cansados de esperar pela promessa de finalização da obra iniciada em 1986, os artistas ocuparam o espaço de direito e acrescentam o termo "inacabado", como um ato de protesto político. Nas atividades culturais realizadas pela companhia, por exemplo, a expressão é impressa em todo o material de divulgação. Aos poucos, a comunidade vai se dando conta de que ali, na quadra QNN13, era para ser um templo de cultura digno das necessidades de lazer e formação do cidadão ceilandense.
Ocupam o espaço O Hierofante e a Cia. Imaginária de Teatro, que se revezam em uma sala de ensaio. A falta de local específico, no entanto, prejudica o trabalho executado pelas companhias. "Os grupos de teatro são obrigados a dividir essa única sala disponibilizada para ensaios e apresentações de peças, além disso, o local é cedido para um curso de karatê e um grupo do Seicho-no-Iê", revela Wellington Abreu, de O Hierofante. Na luta para que o espaço cumpra a destinação, o que mais se ouve falar, sobretudo em tempos eleitorais, é que há um projeto para concluir as obras. "Mas até agora nada foi feito ou apresentado", lamenta o ator, diretor e produtor cultural.
O Hierofante é responsável pela criação do projeto Invasão, que oferece cursos para a comunidade. Já passaram por lá a professora de teatro grego e atriz Sheila Campos (que ofereceu seminário sobre A poética de Aristóteles), o ator Edmilson Braga (que executou treinamento físico para ator com o método de Eugenio Barba) e o cineasta Adirley Queirós (responsável por falar de roteiro para documentários). Todas as atividades são gratuitas.
Castelo de Grayskull
O Centro Cultural da Ceilândia nasceu da reivindicação da comunidade local nos anos 1980. A primeira etapa das obras teve início em 1986, mas foi paralisada devido a problemas apontados com a licitação da empreiteira. A planta do projeto inclui seis edificações: 1) pavilhão de cursos, 2) biblioteca, 3)cine-teatro, 4)prédio com bar, restaurante, teatro de arena, administração e arquivo da cidade, 5) cobertura do forró com espaço para dança, 6) ginásio de esportes. Do projeto original, foram construídas apenas duas edificações, atualmente, ocupadas pela biblioteca, a diretoria social e o ginásio de esporte inacabado - este último batizado ironicamente de Castelo de Grayskull (em alusão ao desenho animado He-man), que serve de abrigo aos moradores de rua.
O administrador regional da Ceilândia, Renato Santana, não quis falar com a reportagem do Correio. Preferiu mandar respostas via assessoria de imprensa. O órgão informa burocraticamente que as obras do ginásio não foram concluídas por erro de cálculo orçamentário da empresa responsável pela construção. O valor quando verificado daria apenas para construir o teto do ginásio - inacabado. A empreiteira devolveu a quantia para a Caixa Econômica Federal, entidade financiadora da obra.
A Administração Regional informou ainda que há um projeto avaliado em R$ 5 milhões para terminar o complexo cultural, mas devido à crise de corrupção no governo do GDF não prosseguirá. O projeto não prevê a construção conforme a planta inicial devido o metrô ter ocupado parte do terreno. A nova construção privilegiará a criação de uma quadra de esporte, circuitos de ginásticas, parque de diversões, quadra de futebol, cerca de alambrados ao redor do complexo, a colocação de duas guaritas e o término do ginásio de esportes. Já o teatro, há uma área pública na QNN 11, de 5 mil metros quadrados, destinada à construção.
Segundo a Administração Regional, existe uma verba R$ 1,5 milhão conseguida por meio de emenda parlamentar. O órgão citou que a obra ainda não foi licitada por não haver profissionais na equipe para desenhar o projeto. Pelo visto, o Centro Cultural Inacabado da Ceilândia se perpetuará como símbolo do descaso público com a cultura e a comunidade de Ceilândia, cidade com 600 mil habitantes.
Diversidade
Concebida por Ed Silva, Luciana Albertin e Valter Credo, a companhia Imaginária de Teatro estreou com Luz da terra (2006). No ano seguinte, levou para os palcos Mateus e Bastiana contra o bicho de fogo. A história mistura folclore com temas atuais. O último trabalho, Laura %u2014 Em memória dos anônimos, trouxe para a cena um casal torturado no regime militar. Foi encenado no Centro Cultural "Inacabado" da Ceilândia.
Casa nova
Criado na Asa Norte, em 1995, com o diretor Humberto Pedrancini no centro da fundação, o grupo ganhou recentemente outra moradia e integrantes. Desde 2006, Pablo Peixoto, Wellington Abreu e Anderson Floriano somam-se à cena ceilandense. Entre os trabalhos produzidos destacam-se: O Sertão segundo Patativa, uma homenagem a Patativa do Assaré (2006) e Os palhaços literários (2007). Ano passado, eles viajaram para apresentações nos Estados Unidos. Agora, o Hierofante trabalha em duas montagens: Bacantes, de Eurípedes e a Tigresa, do italiano Dário Fo.